A intransigência está presente em nossa sociedade
Autor: SindSaúde-SP
08/04/2016
Caso da médica que recusa a atender criança de pais petistas mostra o atual grau de intransigência presente na sociedade
Maria Aparecida Faria
Há uma banalização do preconceito, do ódio e da violência na sociedade que coloca em risco a democracia em nosso país
Uma notícia tem circulado pelos meios de comunicação e redes sociais do país e vem causando repulsa por sua torpeza. Trata-se da atitude da médica gaúcha, identificada como sendo Maria Dolores Bressan, que se negou a prosseguir com o acompanhamento pediátrico prestado ao filho de um ano de idade de Ariane Leitão, alegando, para tanto, que tomara tal decisão pelo fato de que a mãe da criança é filiada ao Partido dos Trabalhadores. Ariane foi secretária estadual de Políticas para Mulheres no governo petista de 2011 a 2015 e atualmente é suplente de vereadora. A atitude repugnante da profissional se deu por meio de mensagem enviada à mãe do garoto. A médica gaúcha sequer teve a dignidade de apresentar seus motivos infames pessoalmente.
Ariane, assim como qualquer ser humano sensato, não compreendeu e nem aceitou passivamente a atitude da médica. Ainda atordoada, fez questão de tornar pública esta situação grotesca que a vitimou e a seu pequeno filho. Como cidadã, foi buscar seus direitos junto ao CREMERS - Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul. Ela denunciou o acontecido para que a instituição se pronuncie sobre o episódio e avalie a conduta ética da pediatra. O órgão abriu sindicância e, garantindo amplo direito de defesa, deve se pronunciar nos próximos dias. Há a possibilidade de que seja aberto um processo ético-profissional. No caso de condenação, a punição pode ser uma censura pública, suspensão e até perda do registro profissional.
É absurda uma situação como esta em que alguém se nega a prestar atendimento médico por conta de incompatibilidade ideológica. Impensável duas vezes ao se perceber que se trata de uma criança que vinha sendo acompanhada desde o seu nascimento. A médica julgou e condenou sumariamente a mãe e a criança. A que ponto chegou a intransigência na sociedade. Atualmente pessoas são perseguidas e agredidas verbal e fisicamente por estarem portando vestimentas vermelhas. Nas redes sociais não é diferente. Comentários sexistas, misóginos, homofóbicos, raciais, excludentes são comuns. Há uma banalização do preconceito, do ódio e da violência. É preciso inverter esta lógica a partir da cultura de paz, do direito ao acesso pleno à democracia, da ampla investigação destas atitudes e da punição exemplar dos culpados.
Preconceito em dose dupla
Ariane nem se recuperou do primeiro choque e teve o episódio sofrido por seu filho repercutindo em outra polêmica. Desta vez, foi a entrevista dada pelo presidente do SIMERS – Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, Paulo de Argollo Mendes, ao Jornal Diário Gaúcho, comentando a atitude da médica pediatra. Perguntado na reportagem se a médica devia demonstrar arrependimento, Argollo foi enfático em dizer que “não tem porque se arrepender. Ela tem que se orgulhar disso. Tem que se orgulhar de ter cumprido o código de ética, ter sido clara, honesta”.
Descobriu-se com o tempo que o presidente do SIMERS é reincidente em causar mal-estar com seus depoimentos. Diz a mídia que o médico gaúcho já havia se envolvido em caso relativamente recente de discriminação e intolerância. Quando do lançamento do Programa Mais Médicos, o falastrão fez questão de demonstrar seu pensamento preconceituoso sobre a capacidade profissional dos cubanos que vieram para clinicar no Brasil. O que não imaginava é que a imprensa iria descobrir que seus filhos estudaram medicina no “Instituto Superior de Ciências Médica de Camaguey”. Formados em Cuba, tiveram que revalidar seus diplomas no Brasil.
A polêmica criada com a inclusão de médicos estrangeiros em nosso país expôs o fenômeno da elitização da profissão. Uma nódoa que atinge uma fração desta categoria. Vale lembrar que os médicos brasileiros foram priorizados no momento de cadastramento ao programa, mas uma parcela se negou a trabalhar em lugares distantes dos grandes centros urbanos e que concentram maior vulnerabilidade social. Recentemente grupos de médicos puderam ser vistos nas passeatas favoráveis ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e pela volta do regime militar. Ainda reverbera na memória desta “elite” a afronta que a presidenta e a sociedade cometeram ao colocar no debate a questão da segregação e da responsabilidade social da profissão.
São estes mesmos representantes da categoria que manifestam descontentamento com o programa do governo federal que estabelece cotas para as universidades. A soberba destes chega ao ápice ao mencionar que as cotas diminuem a qualidade de ensino por conta da pouca capacidade dos alunos cotistas. Sem dúvida, uma “overdose” de preconceito que é logo desmentida. Resultados promissores são facilmente mensurados. É grande o número de cotistas que passam nos primeiros lugares nos vestibulares e encerram seus cursos com índices de aprendizagem elevados.
Estes casos são exemplos de que é, sim, papel do Estado promover oportunidades para que as capacidades individuais e coletivas se materializem. O indivíduo que antes vivia “invisível” agora ganha fisionomia a partir dos mecanismos de inclusão social protagonizados nestes últimos treze anos por meio de políticas públicas eficientes e emancipatórias. Ao tornar-se cidadão este indivíduo deixa a marginalização para trás e se torna sujeito social. É este novo agente que reclama por mais espaço na sociedade ao mesmo tempo em que quer ver garantido seus direitos cidadãos.
A atitude manifestada pela pediatra não cabe em uma sociedade cidadã. É contrária, inclusive, aos preceitos estabelecidos pelo SUS – Sistema Único de Saúde que garantem a universalidade no atendimento médico. Uma política de Estado conquistada com muita luta dos segmentos sociais e de profissionais que sempre acreditaram em um atendimento médico mais humanizado. A médica demonstra a arrogância de quem não aceita o contraditório, não se sensibiliza ou sente afeto por seus pacientes e não tem compromisso ético com sua profissão e com o ser humano. Também é insustentável e inadmissível a argumentação do presidente do sindicato de que a médica tenha cumprido o código ético do profissional de medicina.
Código de Ética Médica
O Código de Ética Médica em seu capítulo I dispõe sobre os princípios fundamentais do exercício da profissão. Em seus artigos iniciais apresenta a síntese do compromisso que este trabalhador deve ter com a vida e o bem-estar de seus pacientes. Os artigos 1º e 2º dizem que: “a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza; o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. ” Não há, tendo em vista o próprio código, qualquer condicionante que minimize a conduta da médica.
A pediatra demonstrou que não aceita conviver com aqueles que pensam diferente. E, desta forma, tenta prejudicar o outro com a arma que possui de imediato naquela situação: a negação do atendimento médico. O que não deixa de ser um ato violento. Abandonar o tratamento de uma criança devido aos argumentos apresentados é irracional. A mesma irracionalidade de quem bate, persegue, ofende, exclui e, por que não, também mata. São graduações de um mesmo sentimento. O que pode ser diferente é o modo como ela demonstrou seu rancor, mas a finalidade é a mesma: punir e eliminar a conduta social que não esteja dentro de seus parâmetros pessoais.
Talvez a médica pense de forma semelhante aos que querem que a sociedade volte a manifestar mais explicitamente a divisão social entre ricos e pobres. Deste modo, os aeroportos e hotéis frequentados por “madames” voltariam a se esvaziar e ser espaços onde circulam apenas aqueles que acreditam ser especiais por possuírem mais recursos financeiros. Será que estamos vivendo um processo de eugenia social? Será que estamos presenciando o fenômeno de um novo modelo de “apartheid” se manifestando agora entre as classes sociais? Será que a ideológica repugnante do arianismo que se sustenta na concepção da superioridade entre raças se mantém vivo e destilando seu menosprezo?
Nos últimos treze anos o país viveu conquistas sociais indiscutíveis. O Brasil se tornou referência na geopolítica, tirou da pobreza 40 milhões de brasileiros a partir da distribuição de renda e criou políticas públicas inclusivas e emancipatórias. Mas há uma parcela da sociedade que nega estes avanços. Ou pior que isto, luta contra de forma enraivecida. As nossas ruas escancaram o preconceito que vitima cotidianamente as pessoas por sua classe social e, agora, por sua opção ideológica. O fenômeno despudorado da violência entre cidadãos comuns mancha a dignidade do brasileiro e o processo democrático tão duramente conquistado nas últimas três décadas. Não podemos retroceder nos direitos sociais e nas políticas públicas conquistadas com tanto sacrifício humano.
Maria Aparecida Faria é secretária geral adjunta nacional da CUT – Central Única dos Trabalhadores e secretária de Mulheres da CNTSS/CUT – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social