A Medida Provisória nº 927/2020 amplia a Calamidade Pública e penaliza os trabalhadores e as trabalhadoras da saúde
Sindicato unido e forte
desde 1989


    A Medida Provisória nº 927/2020 amplia a Calamidade Pública e penaliza os trabalhadores e as trabalhadoras da saúde
    Autor: Joana Cabete Biava
    06/04/2020

    O recuo do governo federal sobre um dos pontos mais polêmicos da MP 927[1], em menos de 24 horas, não resolve os problemas que a medida traz para a classe trabalhadora brasileira, em geral, e para as trabalhadoras e os trabalhadores da saúde, em particular, no momento em que todos são convocados a ajudar no combate à epidemia do novo Coronavírus (Covid-19) no Brasil.

    É provável que a pandemia alcance todo o planeta, o que tem obrigado os países a promoverem políticas de distanciamento social, como forma de retardar o ritmo do seu avanço sobre as populações e diminuir a sobrecarga dos sistemas de saúde, principalmente para os casos graves da doença, diminuindo assim o número de mortos. Diante dessa catástrofe sem precedentes, grande parte dos governos estão buscando incentivar, em velocidade suficiente ou não, o isolamento domiciliar, garantindo o subsídio de parte dos salários ou implementando políticas de renda complementar para as famílias e de compensação das empresas pelos prejuízos que serão enormes[2]. Por outro lado, muitos estão investindo nos serviços de saúde, equipando e protegendo seus profissionais e ampliando sua capacidade de enfrentamento da epidemia.


    A MP 927 publicada pelo governo brasileiro atende apenas aos interesses empresariais e vai no sentido contrário tanto do incentivo ao isolamento domiciliar das famílias, quanto do investimento e incentivo ao trabalho dos profissionais de saúde, o que se soma ainda a outras medidas[3] que, por serem insuficientes, não contribuem para o enfrentamento do problema.


    No primeiro caso, ao se tratar de uma Reforma Trabalhista severa em tempos de Calamidade Pública, a MP 927 retira os sindicatos de qualquer negociação e fragiliza o trabalhador formal na sua relação de emprego, ao possibilitar o estabelecimento de acordos individuais. Isso pode obrigar os trabalhadores a aceitarem as piores condições impostas pelos empregadores (os quais podem aproveitar para fazerem ajustes já previstos antes da epidemia) e sem garantia de contrapartidas para o trabalhador, como a manutenção do emprego. Além disso, possibilita a redução em até 25% das remunerações sem redução de jornada, facilita a dispensa de trabalhadores em empresas que fechem em 2020, ao diminuir a indenização (“multa”) do FGTS pela metade e retira direitos por tempo superior ao próprio período de Calamidade Pública, como no caso da antecipação de férias e feriados futuros[4].


    A medida, portanto, deve atuar no sentido contrário ao das próprias recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, obrigando parcelas de trabalhadores a conseguirem complementação de renda em atividades informais, na maioria das vezes expostas a ambientes de contaminação. Ou seja, não só a medida cobra dos trabalhadores a conta das perdas econômicas (como tem sido a solução dada pelo atual governo para quase todos os males) como pode contribuir, ao mesmo tempo, para o avanço da epidemia a patamares cada vez mais insuportáveis, para a ampliação das desigualdades sociais, prejudicando, inclusive, a capacidade de retomada econômica no pós-epidemia.


    Trabalhadores da saúde: mais trabalho, mais riscos, menos direitos

    Para os trabalhadores em estabelecimentos de saúde com vínculos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao invés de propor medidas que aumentem a segurança no trabalho ou protejam os grupos de risco como idosos e pessoas com comorbidades, a MP 927 propõe a combinação macabra de extensão da jornada no período de Calamidade Pública e restrição da possibilidade de enquadramento da contaminação pelo Covid-19 como doença ocupacional.


    A extensão da jornada desses trabalhadores poderá ser feita de duas formas, por meio de acordo individual escrito e para todas as atividades, inclusive as insalubres. A primeira forma é através da extensão da jornada de trabalho, a qual se respaldaria no artigo 61 da CLT, que trata de extensão da jornada por motivo de “força maior” e para execução de serviços inadiáveis. Segundo o artigo da CLT, essa jornada estendida total não deverá exceder 12 horas.


    A outra possibilidade de extensão se aplica aos trabalhadores com jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso, os quais podem ter a jornada estendida até a proporção de 24 horas de trabalho por 24 horas de descanso, sendo assegurado apenas o descanso semanal obrigatório.


    A medida estabelece, ainda, que a extensão da jornada poderá compor um banco de horas, a ser compensado em até 18 meses após o término do estado de Calamidade Pública, ou pagas como hora-extra.


    O momento é de muitas incertezas, mas uma das únicas certezas que temos é que os trabalhadores da saúde estarão trabalhando mais e em contato direto com o vírus. Sabe-se, pela experiência de outros países, que esses trabalhadores são um dos grupos mais afetados pela epidemia e que têm sido contaminados por uma carga viral elevada, com impactos severos para a sua saúde, levando muitos à morte.


    A resposta do governo para isso é exigir a comprovação do nexo causal, como condição para que a contaminação pelo Covid-19 seja considerada ocupacional. Em outras palavras: exigirá comprovação (qual?) que o vírus foi contraído no exercício do trabalho - e não em outra situação -, para que o trabalhador tenha direito aos benefícios decorrentes das situações de adoecimento no trabalho, vale dizer, o auxílio-doença para os trabalhadores que precisarem se afastar das suas atividades e a pensão por morte decorrente de adoecimento no trabalho[5]. Segundo a MP essa medida valerá para todos os trabalhadores enquanto durar a Calamidade Pública, mas, para os trabalhadores da saúde e em serviços essenciais, ela será particularmente perversa e desmobilizadora, servindo apenas aos interesses dos empresários.


    No caso da saúde no estado de São Paulo, a medida atinge diretamente os trabalhadores CLT do setor privado e do setor público. Nesse sentido, além dos hospitais privados, diversos trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) em autarquias, como os Hospitais das Clínicas em diferentes cidades do estado e em Organizações Sociais da Saúde com contratos de gestão de equipamentos públicos com o governo do estado de São Paulo e municípios, serão impactados. Estima-se que mais de 15 mil trabalhadores são contratados diretamente por apenas dois Hospitais das Clínicas da administração indireta do estado (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) e mais de 53 mil trabalham em hospitais e Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs) geridas Organizações Sociais da Saúde contratadas pelo estado.


    A medida atinge também, indiretamente, todo o SUS, pois, além do aumento sem precedentes das demandas de atendimento médico como um todo, mais pessoas migrarão do atendimento do setor privado para o setor público, em decorrência das perdas de renda e emprego, ampliando um movimento que a política de precarização das relações de trabalho e o baixo crescimento econômico e do emprego já vinham promovendo nos últimos anos.


    A situação de Calamidade Pública permite ao governo federal flexibilizar a política fiscal (de gastos públicos) e, assim, assumir parte do custo da crise, distribuindo-o, portanto, com toda a sociedade. A opção do governo até o momento, no entanto, tem sido sobrecarregar os trabalhadores em níveis incompatíveis com as garantias humanitárias, o que pode levar a um desastre econômico e social. Nesse sentido, apesar da MP 927 ser uma medida que vale, em tese, só no período em que a situação de Calamidade Pública estiver decretada, os seus efeitos podem ser permanentes para a sociedade e a economia brasileiras.


    Joana Cabete Biava* – Subseção do DIEESE no Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúde-SP)


    [1] Incialmente a MP 927, de 22 de março de 2020, possibilitava a interrupção dos contratos de trabalho pelas empresas por 4 meses, sem pagamento de nenhuma bolsa qualificação ou mesmo do seguro desemprego, o que possibilitaria a garantia de uma renda mínima necessária para manter as famílias com aos produtos e serviços básicos no período de isolamento domiciliar. Diante da pressão do movimento sindical e de outros setores da sociedade, esse artigo da MP 927 (Artigo 18) foi revogado, no dia seguinte, pela MP 928.


    [2]
    Para maiores informações sobre as medidas tomadas até o momento por países atingidos pela epidemia de Covid-19 ver a Nota Técnica nº 224 do DIEESE - Medidas adotadas por vários países para conter os efeitos econômicos da pandemia do coronavírus, disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2020/notaTec224MedidasPaises.html


    [3]
    Destaca-se o adiantamento de parcela do abono para trabalhadores do setor privado, a antecipação do 13º benefício de aposentadoria e o auxílio emergencial mensal de R$ 200 para trabalhadores informais.


    [4]
    Uma análise detalhada da MP 927 está disponível na Nota Técnica nº 226-A do DIEESE - Medida Provisória 927: crise do coronavírus cai na conta do trabalhador (atualização), em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2020/notaTec226A.html


    [5]
    Com a Reforma da Previdência aprovada em novembro de 2019, em caso de morte do trabalhador sem que a causa tenha sido acidente ou adoecimento do trabalho, o seu cônjuge receberá uma pensão por morte de apenas 60% da média de seu salário de contribuição e mais 10% por filho dependente.