Artigo
Sem eles, o paciente pode sofrer dor ou angústia respiratória, ou mesmo acordar durante o processo de intubação, ou durante a intubação, e não poder fazer nada nem se comunicar com a equipe que o está assitindo, o que coloca em risco sua vida e o sucesso do tratamento.
Segundo a Sociedade Brasileira de Anestesiologia, a preocupação com a escassez de fármacos essenciais para a anestesia e analgesia, sedação e relaxamento muscular - e, com o uso racional desses medicamentos -, já era compartilhada entre seus membros associados desde 09 de junho de 2020, segundo boletim da entidade distribuído nessa data.
A intenção do boletim era para que os anestesiologistas associados pudessem ser orientados e estivessem instruídos a atuar nos meios competentes, evitando o desabastecimento de fármacos, já que os principais grupos de fármacos usados em anestesia e sedação estavam em falta ou em ameaça de falta em diversas regiões do país. O problema é setorizado e pode variar desde a disponibilidade nacional, estadual e municipal até a escassez no próprio Equipamento de Assistência à Saúde. Faz-se necessária uma completa interação entre os diversos segmentos, desde a cadeia produtiva, a logística e o transporte até o armazenamento e o uso. Nosso objetivo é alertar os anestesiologistas e demais médicos, neste momento de pandemia, para medidas que minimizem ou contornem a escassez de fármacos, principalmente daqueles usados em anestesia e terapia intensiva, que terão o seu consumo aumentado pela necessidade de tratamento prolongado dos pacientes portadores da Covid-19. Os principais fármacos envolvidos são os de uso comum pela anestesia e pela terapia intensiva: agentes indutores; tranquilizantes; bloqueadores neuromusculares; opioides; analgésicos; anestésicos locais; anestésicos inalatórios e agonistas dos receptores alfa, entre outros. Cada EAS deve criar e disponibilizar uma lista de fármacos em risco de desabastecimento, considerando a situação local, regional e nacional. Recomenda-se o uso racional das técnicas anestésicas, principalmente as que usam os fármacos da lista de desabastecimento, de modo que estas possam ser substituídas por outras de igual eficácia, que usem fármacos de maior disponibilidade. A grande maioria desses fármacos apresenta sinergismo, e o conhecimento sobre eles é fundamental para a substituição neste momento de uso racional. Em tempos normais, a anestesiologia prima pela recuperação rápida do paciente e utiliza medicamentos com a menor duração de ação. Em tempos de pandemia, na maioria das ocasiões, a recuperação rápida do paciente não é necessária, e os medicamentos com maior duração de ação (fora da lista de desabastecimento) podem substituir os com o risco de desabastecimento. Recomenda-se uma melhor interação, sobretudo entre a anestesiologia, a terapia intensiva e o setor de fornecimento do EAS (farmácia, almoxarifado), para verificar a disponibilidade desses fármacos, por ocasião da Covid-19. Planejamento e comunicação são as palavras-chave para gerenciar o risco do desabastecimento de medicamentos. O diálogo entre as sociedades médicas (locais, estaduais e federais) e os órgãos governamentais (reguladores e fiscalizadores) pode melhorar o fluxo para o fornecimento e evitar a falta de fármacos. Fonte: Recomendação da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) para o Uso Racional de Fármacos para Anestesia e Sedação durante a Covid-19.
Essa preocupação sobre o desabastecimento do kit intubação já era grande desde junho de 2020. E os anestesiologistas foram instruídos de forma a pensar em alternativas, junto aos órgãos oficiais, para que não chegássemos nesse momento aflitivo e, eu diria, desesperador. No entanto, nada de concreto parece ter sido feito desde então.
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, por meio de sua Comissão Intergestores Bipartite (CIB), vinha tratando do assunto desde 2020. Porém, só em 06/04/2021, quando a média de ocupação de leitos de UTI no estado atingiu 90%, foi feita a divulgação do Ofício CIB nº 19/2021, que trata de permitir a aquisição internacional dos medicamentos: atracúrio, cisatracúrio, midazolam, propofol e rocurônio.
O Ofício CIB 19/2021 informa que a aquisição internacional é ampliada aos serviços de saúde municipais e estaduais, constantes no Plano Estadual de Contigência da Covid-19, de Abril/2020, de maneira centralizada, por dispensa de licitação, por intermédio da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Até aí, somos levados a acreditar que tudo estará solucionado em pouco tempo e que podemos nos tranquilizar porque não acontecerá o desabastecimento desses medicamentos.
Mas aí é que vem o problema: a CIB-SP ressalta no oficio que a adesão dos serviços de saúde, por si só, não garante o sucesso da estratégia nem a entrega efetiva dos medicamentos em questão, pois está condicionada ao trâmite licitatório por parte das empresas fabricantes e a disponibilidade desses medicamentos no mercado internacional.
O prazo para os serviços de saúde que querem participar dessa estratégia manifestarem interesse era até 09/04/2021. O Ofício CIB nº 19/2021 data de 06/04/2021. Três dias para cumprimento das exigências pertinentes ao plano.
No cenário mundial em que nos encontramos, em que faltam vacinas para vários países; a situação do Brasil é crítica devido à recusa do governo federal em comprar quantidades de doses oferecidas; e o mercado farmacêutico brasileiro está colapsando na mesma proporção que a saúde pública, é fácil perceber que tal mobilização da SES-SP veio tardiamente.
Se todos os países estão correndo para sanar suas próprias dificuldades de produção de vacinas e medicamentos do kit intubação, quem iria abrir mão de cuidar da sua própria população para atender outro país? Essa solicitação me remete ao clássico “A cigarra e a formiga”, no qual o Brasil é a cigarra.
Segundo alguns jornalistas da área da saúde - que procuraram a mim, em particular, e ao Sindsaúde-SP, sobre a situação -, a preocupação surgida com o provável colapso da demanda por oxigênio, em Manaus, e a falta de leitos de UTI disponíveis antes mesmo da pandemia se instaurar, já deveria ter sido tratada como fator alarmante pelo Ministério da Saúde, para tentarmos abrandar nossa falta de recursos farmacêuticos.
Cabe ainda ressaltar que o Plano Estadual de Contingência da Covid-19 não foi reeditado no quesito “número de leitos clínicos e de UTI Covid”, e que os leitos Covid constantes no CIB 19/2021 são os mesmos de abril/2020. Ainda constam na relação de leitos aprovados os hospitais de campanha, que foram desativados quando o governo acreditou que a pior fase já tinha passado. E não foram criados novos leitos de UTI de lá para cá ou, pelo menos, não no nível e quantidade necessários.
Nos hospitais estaduais, houve contratação - temporária e por prazo determinado – de Organizações Sociais da Saúde (OSSs) para gerirem leitos clínicos e de UTI exclusivamente para casos de Covid-19, contratos esses, como acontece habitualmente, milionários. Devido às contratações, muitos trabalhadores públicos da saúde estadual foram remanejados para locais distantes até de sua residência ao bel-prazer e determinação exclusiva da SES-SP.
A falta de concursos públicos, conjuntamente à aposentadoria e óbitos da categoria da saúde estadual, justifica a contratação de organizações sociais. Mas isso não tem sido tratado com a devida atenção por muitos dos representantes do povo, eleitos para defenderem os interesses da população e observarem a devida valorização do Serviço Público.
Não obstante, a ampliação da divulgação da plataforma Medcovid, da SES-SP, na qual cada equipamento de saúde deve atualizar seus números de estoque dos medicamentos do kit intubação, foi feita só em março/2021.
Não há como negar a preocupação da Assistência Farmacêutica e da Secretaria da Saúde estaduais em minimizar o caos. Mas também não se pode negar que fomos, mais uma vez, a cigarra da história.
Adriana Arduino Mendes é diretora do Sindsaúde-SP da Região Leste I da capital; farmacêutica com especialização em Indústria pelas Faculdades Oswaldo Cruz-SP e trabalhadora pública do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, da SES-SP.