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No dia 31 de agosto, foi apresentado pelo relator da comissão especial da Câmara dos Deputados que analisa a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32 de 2020, deputado Arthur Maia (DEM/BA), um texto substitutivo da chamada reforma administrativa (para saber mais sobre o assunto, clique aqui), que deverá ser votado no plenário da Câmara nos próximos dias.
Apesar da manifestação do relator de que o substitutivo traria mudanças significativas, em particular em relação à estabilidade do servidor público, na verdade a proposta mudou pouco. O substitutivo de Maia manteve o objetivo geral de desregulamentar a administração pública e transferir recursos públicos para o setor privado e ainda propôs mais retrocessos para o serviço público e para as condições de trabalho dos servidores.
Para a saúde, a proposta cria condições para a precarização do trabalho e para a desarticulação do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da terceirização desenfreada, aspectos que vão afetar também a qualidade do serviço prestado à população.
Fragmentação e precarização dos vínculos de trabalho e do serviço público
A principal mudança do substitutivo está no recuo em relação à substituição do Regime Jurídico Único pelos cinco novos vínculos presentes na proposta anterior. Nesta versão, são mantidos os vínculos de trabalhadoras e trabalhadores do serviço público estáveis e foi acrescentada a definição e regulamentação dos cargos exclusivos de Estado e dos vínculos de trabalho por tempo determinado.
Apesar das mudanças, a proposta ainda contribui para uma ampla fragmentação e diferenciação dos direitos dos(as) trabalhadores(as) em serviços públicos, colocando os(as) trabalhadores(as) da saúde em condições precárias de garantia de direitos.
Por um lado, a proposta prevê que os(as) trabalhadores(as) estáveis investidos de cargos típicos de Estado terão algumas garantias em relação aos demais. Contudo, não inclui os(as) trabalhadores(as) da saúde entre esses cargos, permitindo ao gestor público nos diversos níveis federativos definir as condições de contratação e oferta dos serviços públicos em cada localidade.
Por outro lado, o projeto facilita a contratação de trabalhadores(as) temporários(as) na administração pública, por meio do vínculo de trabalho por tempo determinado. O substitutivo define que este vínculo passa a ser permitido pelo prazo de dez anos e que será ocupado por meio de processo simplificado, sendo que, nas hipóteses de calamidade, emergência ou de paralisação de atividades essenciais, nem mesmo esse processo simplificado é obrigatório.
Além disso, pela proposta tais vínculos não têm uma série de direitos que são assegurados pela Constituição Federal a todos os(as) trabalhadores(as) urbanos(as) e rurais, com destaque para o seguro-desemprego e a aposentadoria.
O vínculo temporário amplia o risco de apadrinhamentos no serviço público e, também, pode ser usado para desmobilizar movimentos grevistas pela contratação de pessoal temporário, dificultando a luta e rebaixando as conquistas dos(as) trabalhadores(as).
Como a saúde é um serviço com custos fortemente baseados em mão de obra, em um contexto de crise econômica e regras fiscais focadas na dimensão da folha de pagamentos dos entes federativos, é provável que o gestor público busque sempre as modalidades mais precárias e baratas de contratação direta e, ainda, que a própria oferta de serviços de saúde seja cada vez menos feita diretamente pela administração pública. Acontece que a proposta amplia os mecanismos e possibilita a precarização da própria terceirização por meio de Instrumentos de Cooperação, como veremos a seguir.
Com isso, a ocupação na saúde tende a se caracterizar por condições de trabalho e salariais cada vez mais desiguais entre trabalhadores(as) de diferentes ocupações e regiões, muitas vezes dentro de uma mesma cidade ou bairro.
Avanço das terceirizações e privatizações na saúde
O substitutivo não altera a proposta original em relação à constitucionalização da adoção de Instrumentos de Cooperação nos serviços públicos. Nesse sentido, permite a terceirização e privatização de serviços, ampliando as possibilidades de transferência dos recursos públicos para o setor privado.
É importante ressaltar que o texto da PEC 32 autoriza que os entes federativos firmem instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e privados para a execução de serviços públicos, incluindo o compartilhamento de estrutura física e recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira (nesse aspecto, a PEC excetua apenas as atividades privativas de cargos exclusivos de Estado).
Ou seja, trata-se de algo que vai além da modalidade de contrato de gestão por Organizações Sociais (Os’s) que atualmente já está amplamente disseminado nos serviços de saúde no país.
A PEC permite que entidades com fins lucrativos atuem na execução de serviços públicos, o que cria conflitos entre o interesse público e o privado e não assegura a regulamentação mínima da gestão atualmente vigente na gestão por OS’s no SUS.
Assim, a proposta, ao multiplicar as formas de gestão dos equipamentos de saúde e deixar para os entes a decisão de como organizar o sistema na sua localidade, contribui para a desagregação do sistema e abre cada vez mais portas para a introdução de interesses privados na definição das estratégias e políticas públicas.
Ademais, a introdução de diferentes formas de contratação contribui para a fragmentação dos(as) trabalhadores(as) da saúde e das suas organizações representativas.
Estabilidade ameaçada
Além da ampliação de vínculos de trabalho menos estáveis (por tempo determinado e vínculos CLT nos instrumentos de cooperação), a proposta mantém a relativização da estabilidade dos atuais funcionários públicos que está na proposta original da reforma, mantendo a possibilidade de perda do cargo por decisão proferida por órgão judicial colegiado, o que é um retrocesso em relação ao texto constitucional vigente, que determina sentença judicial transitada em julgada.
Além disso, o substitutivo define uma nova possibilidade de desligamento dos(as) futuros(as) trabalhadores(as), nos casos em que o cargo se tornar desnecessário ou obsoleto. Trata-se aqui de um grave risco para o funcionalismo público, dado que o avanço da terceirização pode implicar na sua obsolescência, criando um fato consumado.
Para os(as) atuais trabalhadores(as), caso seus cargos sejam extintos por serem considerados desnecessários, estes serão colocados à disposição da administração pública e reaproveitados em outras posições, sem garantia de que a função será semelhante.
A estabilidade, vale lembrar, é condição fundamental para o(a) funcionário(a) público(a) exercer seu trabalho com mais autonomia em relação às pressões políticas e ideológicas e ter segurança para denunciar eventuais fraudes, atos de corrupção e se colocar ao lado do usuário na defesa da qualidade do serviço. Além disso, uma menor rotatividade do(a) trabalhador(a) é a garantia da sociedade na continuidade e aprimoramento do serviço público ofertado.
Avaliação de desempenho e mensuração da satisfação dos cidadãos por meio eletrônico
Na avaliação de desempenho também há retrocesso. Não se busca a melhoria da oferta dos serviços públicos à sociedade, pois o método não prioriza a avaliação da estrutura do serviço público como um todo, mas sim do servidor que atua na ponta, ignorando as condições que o Estado proporciona para que os(as) trabalhadores(as) possam atender à sociedade.
A possibilidade de mensuração da satisfação dos cidadãos por meio eletrônico pode enviesar a avaliação dos(as) funcionários(as) e do serviço público ofertado, pois será diferente avaliar um(a) trabalhador(a) que atua diretamente no atendimento aos usuários e os(as) demais trabalhadores(as) em atividades-meio.
Muitos obstáculos precisariam ser superados para uma avaliação correta dos(as) funcionários(as) públicos(as) por meio eletrônico: os cidadãos precisam ter conhecimento e considerar a estrutura à disposição do(a) trabalhador(a) para o atendimento no momento da avaliação; saber quais serviços são executados por não funcionários(as) públicos(as) (por exemplo, por meio dos instrumentos de cooperação); é preciso criar filtros para a atuação de grupos de interesse que queiram prejudicar o serviço público (por exemplo, na área da saúde o serviço de fiscalização da vigilância sanitária ou grupos anticiência que questionem a atuação dos profissionais).
Apesar de não detalhar todo o escopo e as implicações desse tipo de avaliação, a proposta sugere que contará também entre os critérios para desligamento do(a) trabalhador(a) público.
A contrarreforma administrativa afeta trabalhadores(as) atuais, novos e toda a sociedade
Pode-se dizer que o único avanço para o campo da saúde foi a suspensão do ponto de permitir a militares da ativa acumularem cargos na saúde, o que retira um dos aspectos de cunho autoritário e militarista da proposta. Ainda assim, a proposta se reveste de instrumentos que facilitam apadrinhamentos e o maior atendimento a interesses privados em detrimento dos interesses coletivos na prestação do serviço público de saúde.
Além disso, amplia a hierarquização entre trabalhadores(as) das atividades-meio e atividade-fim dos serviços públicos, tanto pelas garantias concedidas aos cargos exclusivos de Estado quanto pelas condições de avaliação diferenciadas. Nesse sentido, a proposta fragiliza fortemente os(as) trabalhadores(as) da saúde pública.
Importante frisar ainda que a (contra) reforma administrativa se insere em um contexto de redução do papel do Estado e desregulamentação e precarização do mercado de trabalho brasileiro que afeta toda a sociedade e os(as) trabalhadores(as), rebaixando direitos e a média salarial no setor público e no setor privado. É, portanto, necessário que todos se unam na luta pela sua rejeição no Congresso Nacional.
Enfim, o substitutivo não traz medidas que possam contribuir para melhorar a administração e os serviços públicos no país, pelo contrário; contribuem para sua desagregação, precarização e revelam que a intenção segue sendo transferir recursos públicos para o setor privado e a mercantilização de direitos sociais.