Artigo
O absurdo caso da Prevent Senior abriu a Caixa de Pandora da saúde privada no Brasil. Para quem não se lembra, Pandora é, na mitologia grega, o equivalente a Eva para os cristãos. Enquanto Eva comeu o fruto do pecado tornando a todos nós pecadores, Pandora também teria desobedecido a uma ordem suprema ao abrir uma caixa e, assim, liberar todos os males ali contidos.
Lições de mitologia à parte, o terrível caso da Prevent Senior abriu uma vala enorme e sem precedentes na medicina brasileira. O depoimento de Pedro Benedito Batista Jr. - diretor-executivo da operadora de saúde, que surgiu no mercado oferecendo preços mais módicos que a concorrência e um atendimento específico aos mais velhos – estarreceu aos senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19.
Um dossiê encaminhado à CPI por médicos que trabalharam para a empresa na pandemia continha denúncias de que eram forçados a receitar o propagandeado kit Covid - combo que contém medicamentos cuja ineficácia para a doença já foi comprovada cientificamente – a pacientes. Pior 1: os pacientes e suas famílias não sabiam que estavam recebendo os medicamentos e fazendo parte de um experimento para testá-los. Pior 2: o prontuário desses pacientes era modificado, o que infringe a ética médica, além de contribuir para a subnotificação dos casos de Covid-19. Pior 3: fazer experimento científico com pessoas é assunto sério e necessita do cumprimento de todo um rito ético e autorização de órgãos. Nada disso foi feito.
Ao longo da história, experimentos “científicos” com humanos ficaram conhecidos pelo nível de crueldade. Quem sabe um pouco da história do nazismo, especialmente na Segunda Guerra Mundial, sabe que pernas eram arrancadas, bebês eram retirados das barrigas das mães vivas, judeus eram jogados em câmaras de gás com diferentes níveis de pressão/tempo para testar-lhes a resistência. A dor era impingida para levar os limites humanos ao máximo.
Ainda que os testes da Prevent Senior - cujo objetivo principal era verificar a eficácia de medicamentos já conhecidamente ineficazes (embora haja pessoas em altos cargos políticos ainda defendendo o tal kit) - não tivesse aqueles níveis de tirania, jogar com a vida humana por dinheiro ou marketing é, por si só, extremamente impiedoso.
O caso abre uma discussão ética a respeito do avanço da indústria da medicina privada no país, principalmente pelo fato de muitas dessas empresas estarem patrocinando campanhas políticas para ter lobby no Congresso Nacional e fazer valer seus pleitos. Fora que no próprio comando do Ministério da Saúde há alguém com larga passagem pela iniciativa privada, que tem demonstrado mais apego ao cargo, ao poder e em agradar o chefe do que com a vida dos cidadãos e cidadãs brasileiros.
Estudo
O professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Mario Scheffer, que é um defensor do Sistema Único de Saúde (SUS) e estudioso do tema, divulgou recentemente o resultado de uma pesquisa que mostra que a judicialização contra planos de saúde, só em São Paulo, cresceu 391% em uma década.
Segundo revelou em entrevista a uma rádio, os principais motivos para judicializações foram negação de atendimento e reajuste no valor do plano.
Sendo assim, chegamos à pergunta que vale 1 milhão de dólares: a quem interessa facilitar o avanço dessa indústria? Ao pobre, que não pode pagar, não pode ser.
Em um país tão desigual como o Brasil, o discurso que costumamos ouvir é de que é necessário privatizar tudo para que o governo possa cuidar do que interessa. Se saúde e educação são privatizadas, os bens maiores de qualquer nação, o que interessa aos governos tomar conta?
O rito até esse caminho é de conhecimento de todos: primeiro, se corrói toda a estrutura para ter como argumento que o Estado, sem recursos, não consegue dar conta desses serviços. Essa é a desculpa esfarrapada de que governos lançam mão para defender seus projetos de terceirização/privatização.
Ironicamente, na semana em que o depoimento do executivo da Prevent Senior estarreceu o Brasil, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32 começou a avançar no Congresso Nacional. O projeto atende exatamente ao princípio dos governos ditos liberais: desmantela-se toda a estrutura, a começar por seu capital humano, que são os trabalhadores e trabalhadoras. Depois disso, joga-se a pá de cal.
Tem sido assim ao longo da história brasileira. Basta fazer a lição de casa e verificar o que aconteceu com as empresas que foram privatizadas neste país.
Na saúde e na educação, o estado mínimo defendido por economistas que defendem o capital acima de tudo não cabe, principalmente em um país tão imenso e desigual.
A pandemia nos mostrou que, se não houvesse um sistema público e universal de saúde, muitas pessoas mais teriam morrido e não conseguiríamos sequer avançar na imunização.
A saúde é um bem coletivo que deve ser zelado pelo Estado para que todos, sem distinção de qualquer tipo, possam ter saúde. Nesse tema, os interesses privados não podem se sobrepor aos coletivos.