Parada obrigatória no SUS
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    Parada obrigatória no SUS
    Autor: Revista Radis
    26/03/2015

    Crédito Imagem: Revista Radis

    Estudantes terão que cumprir 30% do internato na atenção básica e serviços de urgência e emergência; especialidades mais comuns exigirão residência em Medicina de Família e Comunidade
    Não faltam polêmicas sobre a formação médica no Brasil. Desde 2014, tem estado em grande evidência a instituição das novas diretrizes curriculares nacionais (DCNs) para a graduação em medicina. O tema, no entanto, é apenas a ponta de um iceberg, que inclui discussões de assuntos como a democratização do acesso aos cursos de Medicina, a qualidade da formação profissional, a carência de médicos no interior do país (e em algumas especialidades) e também a necessidade de formar médicos voltados para as necessidades do SUS — temas que mobilizam opiniões divergentes entre gestores, profissionais, estudantes e formuladores de políticas. 
     
    As novas DCNs para a formação médica foram instituídas com publicação da Resolução 3 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, em 23 de junho de 2014. A reformulação estava prevista desde o lançamento do Programa Mais Médicos, pela lei que o instituiu (Lei 12.871, de 22/10/2013). Além de preconizar o suprimento de médicos para o SUS e fixar regras para o provimento desses profissionais por meio de intercâmbios, a legislação prevê a abertura de novos cursos de Medicina, com oferta de cerca de 12 mil vagas até 2018, e estabelece as novas DCNs. 
     
    Estágio obrigatório
     
    Entre as principais mudanças no novo currículo está o estágio obrigatório dos médicos no SUS. Pela resolução, o internato deve ter a duração mínima de dois anos, com 30% da carga horária cumprida na atenção básica e no serviço de urgência e emergência. Os estudantes serão também avaliados pelo governo a cada dois anos. A avaliação será obrigatória e o resultado será contado como parte do processo de classificação para os programas de residência médica. A prova será elaborada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável por avaliações como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O Inep tem dois anos para começar a aplicar a avaliação.
     
    O curso de graduação continuará a ter seis anos de duração. Durante a discussão do programa, cogitou-se sua ampliação para oito anos. Apesar de a proposta não ter sido aprovada, determinou-se que os médicos recém-formados que desejarem ingressar nos programas de residência de grande parte das especialidades mais comuns precisarão, antes, cumprir permanência de um a dois anos na residência em Medicina de Família e Comunidade. Entre estas especialidades estão Medicina Interna (Clínica Médica), Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Cirurgia Geral, Medicina Preventiva e Social e Psiquiatria. As escolas de Medicina terão até dezembro de 2018 para implementar as mudanças. No entanto, nas turmas abertas a partir do segundo semestre de 2014, o novo currículo terá um ano para ser implementado.
     
    Especialidade de base
     
    A política oficial é a expansão de vagas, com a criação de novos cursos. “A meta é ter 600 mil médicos formados no país em 2026, atingindo a relação de 2,7 médicos por mil habitantes, a mesma do Reino Unido”, explicou Heider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde do Ministério da Saúde. Ele apresentou as “ideias-força” contidas nas novas diretrizes curriculares durante o 52º Congresso Brasileiro de Educação Médica (COBEM), realizado em novembro de 2014.  O tema do Congresso, realizado na cidade catarinense de Joinville, já indicava a dimensão do desafio: “O futuro da educação médica na graduação e na pós-graduação e o seu papel transformador da sociedade”.
     
    “A média dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] é de 3,2 médicos por mil habitantes. Segundo a OMS, há 1,7 médicos no Brasil para cada mil pessoas. O índice é inferior à média das Américas (mais de 2 por mil)”, informou Heider, explicando que a estratégia de aumentar a quantidade de profissionais prioriza a formação de profissionais voltada para à atenção básica. “Hoje, só 4% dos médicos têm formação análoga a Medicina de Família e Comunidade”, contabilizou.
     
    Segundo ele, a residência médica é lugar estratégico para formação em Medicina Geral de Família e Comunidade como “especialidade de base”, razão pela qual o governo teria aumentado em mais de 500% a quantidade de bolsas de residência pagas pelo Ministério da Saúde nesta área específica. “O curso de Medicina no Brasil passa a ter uma especialidade de base: a Medicina Geral de Família e Comunidade. A residência é o lugar onde não dá pra fugir da assistência integral”, assegurou. O secretário defendeu ainda que é preciso formar docentes — “Não basta ser um bom médico [para ser um bom professor de Medicina]. Tem que ser pensada a especificidade do ensino da Medicina”, disse Heider — e “evitar um modelo superado de formação e especialização precoces”. 
    Em relação à execução das políticas nas áreas de formação médica e integração entre ensino e serviço, Heider informou que a solução encontrada foi a separação das atuações dos dois ministérios envolvidos. “A graduação fica a cargo do Ministério da Educação e residência como responsabilidade do Ministério da Saúde. 
    Estudantes passarão a ter a formação em Medicina de Família como especialidade de base, razão pela qual o governo pretende aumentar em mais de 500% a quantidade de bolsas de residência nesta área (Foto: ASCOM HUUFMA)
     
    Falta consenso
     
    As determinações acerca das novas DCNs não são consenso, alertaram representantes de docentes, estudantes e pesquisadores do tema da formação médica. Durante o congresso, muitos consideraram que não houve diálogo suficiente na elaboração das novas diretrizes e se mostraram preocupados com dificuldades de implantação e de entendimento dos parâmetros. O diretor da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Sigisfredo Luis Brenelli, em declaração à Radis, também demonstrou preocupação. “Na elaboração das diretrizes curriculares de 2001 tivemos autonomia, discutimos por três ou quatro anos como deveria ser o modelo da educação médica — até então, nossas diretrizes eram do regime militar. A Abem sempre acompanhou e se esforçou para que as escolas se adaptassem e cumprissem as regras. Houve naquele momento um processo democrático de discussão. Já a Lei do Mais Médicos normatiza situações que não são de claro entendimento e têm caráter mandatório. A Abem quer discutir melhor”, considerou. Ele criticou aspectos pontuais das diretrizes, como, por exemplo, a determinação de que 30% da carga horária do internato terão que ser cumpridos no sistema público. “Não é isso que vai melhorar o SUS. As diretrizes anteriores já propunham que a educação médica tinha que passar pelo sistema público. A quantidade era discutível”, afirmou.
    Sigisfredo, que também é docente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas, em São Paulo, disse ainda que enxerga um longo percurso antes que mais estudantes passem pelos serviços do SUS, lembrando que há escassez de tutores e preceptores — docentes que supervisionam alunos no internato e na residência — e que falta formação e remuneração adequada para estes profissionais (Radis 133). “Em qual infraestrutura? Como vai ser a preceptoria? Quem vai ser esse docente?”, questionou. Para o professor, será preciso um grande esforço na integração ensino-serviço. “Além disso, existem questões de segurança, infraestrutura e acesso para os estudantes que precisam ser discutidas entre a lei e a coisa acontecer”, disse à Radis, lembrando que a Abem está envolvida em projetos de capacitação de preceptores e docentes, ao lado da Fiocruz. “A capacitação precisa ganhar escala”, ressaltou.
     
    O pesquisador Sérgio Rego, do departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenador do mestrado e doutorado em Bioética — programa associado de Fiocruz, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) — também considera ser necessário um enorme esforço para que as mudanças não virem “um museu de grandes novidades”. “Acho as propostas governamentais inseridas na Lei do Mais Médicos muito bem intencionadas, mas que têm uma dificuldade enorme na implementação e controle, já que haverá muita resistência (justa ou não) de grande parte dos médicos”, prevê. Ele, no entanto, concorda que existe a necessidade de mudar o perfil dos profissionais formados, diminuindo a “dependência extrema de tecnologia para diagnóstico e formando médicos generalistas”.
     
    'Médico do postinho'
     
    “O curso de Medicina é o que menos se democratizou historicamente no acesso. Mais que em outros cursos, é formado de pessoas brancas e dos setores mais abastados da sociedade”, observou Vinicius da Rocha, diretor do Departamento de Desenvolvimento da Educação em Saúde do Ministério da Educação (MEC), durante o COBEM. 
     
    Para ele, é preciso aumentar não somente a quantidade de médicos, mas também a qualidade da formação destes profissionais. “Escassez de médicos é questão mundial; a qualidade da formação é fundamental. Nos Estados Unidos, a terceira causa de morte hoje é a iatrogenia [danos à saúde causados pelo próprio tratamento médico]”, afirmou.
     
    Francisco Arsego de Oliveira, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e secretário executivo do Conselho Nacional de Residências Médicas, lembrou que o SUS tem papel constitucional de ordenador de recursos humanos em saúde. Para ele, é importante que a formação profissional aumente numericamente e integre-se ao SUS e às novas DCNs. “Temos que superar o desconhecimento da área de Medicina de Família e Comunidade”, alertou, criticando a visão pejorativa que classifica o profissional da área como “médico do postinho” e defendendo maior incremento de recursos para a estrutura da atenção básica, como a provisão de acesso à banda larga para todas as Unidades Básicas de Saúde. 
     
    Sigisfredo discorda da estratégia de se ampliar o número de médicos com a criação de novos cursos. “O problema maior é o aspecto qualitativo. O médico precisa ser bom. E a estrutura também, caso contrário, acontece um desperdício de recursos, quando a estrutura não permite desenvolver o trabalho”, criticou. Para ele, a estratégia de abrir novos cursos de medicina é frágil e não garante a fixação de médicos em regiões carentes de profissionais. “Abertura de novas escolas não fixa médicos. Provimento e fixação de médicos são coisas diferentes. Um plano de carreira mais vantajoso e a abertura de residências nos serviços são mais eficazes para fixar médicos em regiões carentes de profissionais”, declarou. 
     
    Avaliação e métodos
     
    Com o intuito de verificar permanentemente a qualidade da formação, as novas DCNs preveem avaliação do estudante de graduação a cada dois anos. As provas serão organizadas pelo Inep deverão começar a ser aplicadas já este ano. O resultado das provas contará para ingresso de estudantes em programas de residência. A ideia é articular e convergir diferentes avaliações: o anterior Teste de Progresso do Médico — avaliação do desenvolvimento cognitivo dos estudantes aplicado durante o curso de graduação, onde são verificadas habilidades psicomotoras e atitudes —, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) e Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira (Revalida) e a seleção para a residência médica, explicou o secretário Heider Pinto.
     
    A estudante de Medicina Monique França, no quarto período de graduação da Uerj, disse estar preocupada com a avaliação centrada no estudante. Para ela, a graduação não pode ser apenas uma etapa de preparação para a residência. “Hoje em dia saímos correndo do internato, sem nos preocuparmos com o médico que queremos ser, mas sim em como passar para a residência”, observou. Ela ponderou que, mais do que a visão de que “estudante não gosta de prova”, o que o corpo discente defende é que docentes e infraestrutura também sejam avaliados. “Tememos que a avaliação se torne uma ação punitiva sobre os estudantes diante de um resultado negativo”, argumentou. “Se a avaliação for apenas uma prova de caráter meramente cognitivo, de aspectos conteudistas, não é adequada para ingresso na residência. Comportamento e atitude são aspectos muito importantes e precisam estar presentes na avaliação do estudante e do profissional”, lembrou Brenelli.
     
    Mudanças necessárias
     
    Sérgio Rego avalia que, apesar das polêmicas e de pontos pouco claros nas novas diretrizes, está certo que o ensino médico precisa mudar, a começar pelos docentes. Na opinião do pesquisador, apenas uma boa formação técnica não resulta automaticamente em um bom médico. “As faculdades precisam mudar a maneira de formar profissionais”, avaliou, argumentando que atualmente se discutem métodos de ensino e aprendizagem, o que não garante a mudança de paradigma. “Independente de métodos, a matriz do que é um profissional médico não muda porque ela não muda na cabeça dos professores. Métodos específicos para a formação ética e crítica são necessários. A dimensão cognitiva e afetiva tem que começar em sala de aula”, orientou.
     
    Sérgio questionou, a partir dos resultados obtidos pela pesquisa que elaborou com o programa Ver-SUS (um dos programas recentes de integração ensino-serviço), se a maior exposição de estudantes ao serviço público irá resolver o problema. Ele citou depoimentos de estudantes que, após trabalharem no SUS, proferiram frases como “Ali [o SUS] é onde eu não quero estar no meu futuro. Eu não pertenço a este mundo, esta não é a minha realidade”. O problema da formação, para o pesquisador, não está somente nos profissionais, mas nas escolhas feitas durante a capacitação. “O ensino é voltado fortemente para o cuidado individual. A graduação hoje não consegue passar a dimensão coletiva. Nosso sistema de saúde foi construído em cima de um modelo muito centrado no hospital”, observou. 
     
    “O texto das DCNs é muito prolixo, dificulta o entendimento, mas as diretrizes não trazem nenhum bicho-papão”, resumiu Geraldo Cunha Cury, diretor-regional da Abem em Minas Gerais. Para ele, um dos aspectos que ainda não está bem esclarecido é o Artigo 24 da Resolução, no ponto em que trata dos Contratos Organizativos de Ação Pública Ensino-Saúde (Coaps). O objetivo dos Coaps é regular a pactuação entre a instituição de ensino e a unidade de serviço (cenário de prática) em que se dará o internato e outras atividades do ensino profissional. Ele é firmado entre a escola médica e as secretarias municipais e estaduais de saúde. “O contrato organizativo cria a base legal para compromissos entre gestores e instituições de ensino. Permite investimentos e qualificação da preceptoria. Pode envolver o controle social e os estudantes”, anunciou Heider Pinto. Para ele, a vantagem da pactuação é a estabilidade de recursos para funcionamento da integração ensino-serviço. “Muitas vezes, acontece de hospitais darem preferência, na hora de permitir que os alunos façam estágio, a escolas privadas, que são fonte de recursos para os hospitais”. Esse tipo de contrato, segundo ele, permite que se reduza a competição entre universidades pelos cenários de prática. 
     
    O tema, no Cobem, foi um dos que mais exigiu esclarecimentos dos gestores e docentes: “Todo mundo está desorientado em relação a isso. O processo não está dado. A implementação disso será ao longo do próximo ano e até 2018”, definiu Geraldo. 
     
    Cultura da violência
     
    Outro assunto que mereceu debates durante o Cobem foram as denúncias surgidas dentro dos cursos de Medicina sobre trotes violentos e até abusos sexuais. Antes mesmo dos casos envolvendo abusos sexuais entre veteranos e calouras da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP), o acadêmico Felipe Scalisa, estudante daquela instituição, analisou o tema em mesa-redonda sobre trote e bullying promovida pelo congresso. “O curso tem horário integral e uma cultura própria. Acontece um isolamento social do estudante, que tem impacto relevante. Isso dificulta a organização estudantil”, avaliou. Ele acredita que, para evitar episódios de assédio e violência, é necessário promover uma mudança na cultura que já existe entre docentes e nos próprios cursos médicos. “A estrutura da violência é circular. É a reprodução do discurso hegemônico e das estruturas de poder. Proibir simplesmente o trote, por exemplo, não adianta. Houve morte de um calouro da USP em 1999, mas o trote só mudou de lugar. Foi para a festa que acontece em um sítio”, relembrou.

    http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/150/reportagens/parada-obrigatoria-no-sus










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