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    Cidadania grátis em Cochabamba
    Autor: Carta Capital
    30/09/2015

    Crédito Imagem: Carta CApital

    Na praça que foi palco da “guerra da água”, professor dá aulas de história e política
    Na praça 14 de Setembro, no Centro de Cochabamba, pedestres param para ler as notícias do dia nas páginas do jornal afixadas em um painel. Na sua parte superior lê-se: “Você está na praça da guerra da água, o lugar mais importante de Cochabamba, onde se informa, se capacita, se debate, e é o bastião do processo de mudança”. Desde a luta travada pela população, em 2000, contra a privatização da água, quando milhares de bolivianos chegaram a ocupar a praça e arredores por 12 dias, o painel integra o cenário. Quem o atualiza é Ramiro Saravia, coordenador do Red Tinku, grupo de apenas oito integrantes dedicado à formação política de base. “Para mim, a guerra da água foi uma escola”, diz o sociólogo de 35 anos, filho de operários. 
    As notícias sobre política, economia, cultura e esportes são complementadas por comentários e críticas redigidos com caneta vermelha. “Corrijo porque a imprensa é de direita, elitista, não conhece a realidade do povo”, diz Saravia, voz calma e um bolo defolhas de coca maceradas no canto da boca. No meio da manhã e no fim da tarde, o painel torna-se a base de uma aula pública de história do país dada pelo sociólogo.  
     
    Cadeiras de plástico vermelhas são organizadas em semicírculo em frente ao painel. Os alunos aos poucos se aproximam. Muitos ficam de pé. Para cerca de 30 ouvintes, começa a aula da Universidade Popular Libertária “La Plaza”: “As primeiras civilizações viviam nos Andes, na Amazônia e no Cha...co”, explica Saravia. A pausa no fim das últimas palavras é uma provocação para que o público as complete. “Depois vieram os incas, que tinham uma cultura de base comunitária, ninguém passava fome. É daqui que veio o bem-vi...ver.” O professor discorre em seguida sobre a invasão espanhola e os movimentos indígenas de resistência. 
    Praça-14-de-Setembro
    A 14 de Setembro virou um símbolo de resistência em Cochabamba
    O público ouve atento. Em sua maioria homens, das mais diversas idades, eles fazem comentários a todo momento, sem interromper, no entanto, a exposição. A narrativa atravessa o nascimento da república e chega à Guerra do Chaco. “Sem essa batalha não haveria a Revolução de 52. Em 1935, surge o primeiro sindicato camponês em Cochabamba. Em 1946, o sindicato falava em socia...lismo.”  
    Há quem se ofenda com a defesa de Saravia da luta camponesa em oposição ao governo liberal: “E por acaso os demais profissionais não são dignos?” O sociólogo não entra na discussão e a aula segue até o momento atual, quando o professor descreve a importância de existir um indígena camponês na Presidência da República: “Além da luta de classes, aqui a luta étnica existe há muito mais tempo”.
    A aula dura cerca de uma hora. Ao fim, são oferecidos por 2 bolivianos, cerca de 1 real, resumos da apresentação em folha sulfite, além de livros produzidos pelo Red Tinku. À noite, o evento se repete. Em alguns dias, há exibição de filmes e documentários. “É um espaço livre, existe uma fome de saber do povo. É interessante quando alguém me diz que aprendeu algo na praça”, destaca.
    Mural-com-Recortes
    Mural com anotações
    A praça pública é “o lugar no qual o povo assume a voz que canta”, dizia o filósofo russo Mikhail Bakhtin. A experiência em Cochabamba é reveladora nesse sentido. Mas não foi sempre assim. Os indígenas e camponeses só passaram a frequentar o espaço depois da conquista dos direitos civis, em 1952. As aulas, por sua vez, começaram a partir de discussões políticas que fervilhavam por todos os cantos na guerra da água. “O povo descobriu que tomar a praça era tomar o poder”, constata Saravia.
    As aulas proporcionaram fama ao militante. O professor foi aconselhado a entrar na política, mas a opção não o atrai. “Creio que todo o processo de luta popular mudou a Bolívia, e foi importante o crescimento do Movimento ao Socialismo, partido de Evo Morales. Desde a Revolução de 52 não houve um momento tão interessante. Mas o meu trabalho é de base, acredito que as mudanças se fazem de baixo.” 
    Há quem o acuse de ser patrocinado pelo governo. Saravia ri da intriga. Ele define o Red Tinku como autônomo, libertário e revolucionário. Conta que seu provento vem do emprego de professor substituto em um colégio e de trabalhos desenvolvidos pela organização, incluídas oficinas de formação política para sindicatos, venda de materiais de estudo e aluguel de quartos simples e baratos a turistas na sede alugada do movimento, local onde mora.
    “As fundações e ONGs têm dinheiro, o Estado e os partidos políticos também, mas ninguém faz trabalho de base todos os dias como nós. Qualquer um pode se dizer socialista, mas é na prática que se deve demonstrar o que realmente é.” Saravia demonstra. 
    *Reportagem publicada originalmente na edição 868 de CartaCapital, com o título "Cidadania grátis"

    http://www.cartacapital.com.br/revista/868/cidadania-gratis-1403.html










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