Mobilização que gera saúde
Autor: Revista Radis
08/10/2015
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Conquista do SUS, participação social ainda enfrenta desafios para tornar efetivas reivindicações da população
A menos de dois meses da 15ª Conferência Nacional de Saúde, mais de 4.700 conferências municipais já foram realizadas, além de plenárias livres e populares por todo o Brasil. Com a proximidade deste momento em que mais pessoas debatem as políticas de saúde, que acontece a cada quatro anos, é hora de fazer uma pergunta: Como anda a participação social no SUS e quais os desafios para tornar realidade as reivindicações expressas em conferências e outros espaços de controle social?
A história do Sistema Único de Saúde está ligada às conquistas no campo da participação social. Como lembra o secretário-executivo do Conselho Nacional de Saúde (CNS), João Palma, o SUS foi construído pela luta dos movimentos populares, ainda nos anos 1970. “A gente só vê o SUS porque ele tem participação social”, destaca. Para reivindicar a criação de postos de saúde e a garantia de acesso, as primeiras mobilizações surgiram nas periferias das grandes cidades, como na zona leste de São Paulo, e criaram os primeiros conselhos populares. “Dali nasceu o embrião do que viriam a ser os conselhos de saúde”, completa.
Maria Valéria Correia, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e autora do livro “Desafios para o controle social” (Editora Fiocruz), concorda que foi graças às lutas sociais do Movimento da Reforma Sanitária que se conseguiu institucionalizar o SUS e seus princípios. É preciso lembrar que essa mobilização também foi marcada pelo combate à ditadura e pela recusa a um modelo assistencial privatista da previdência social. “A participação social foi importante para a construção do SUS e é decisiva no contexto atual de ameaça à sua existência”, ressalta. Mas ela alerta para o fato de que esses espaços estão localizados dentro do Estado, o que pode subordiná-los a apenas atender às demandas dos gestores.
Controle Social e Participação
Controle social e participação popular são muitas vezes tratadas como a mesma coisa, mas na realidade é possível apontar algumas diferenças. O controle social no SUS abrange práticas de fiscalização e participação nas decisões relacionadas às políticas de saúde, como esclarece o manual “O SUS de A a Z” (Ministério da Saúde). Quem exerce o controle é a própria sociedade, por meio da representação de seus segmentos, nos Conselhos e Conferências de Saúde, mecanismos garantidos pela Lei 8.142/1990.
Para o jurista Ayres Britto, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) até 2012, o controle social é uma forma de fiscalização de fora para dentro do Estado, pois “a população tem satisfações a tomar daqueles que formalmente se obrigam a velar por tudo que é de todos”. Já Maria Valéria Correia aponta, em seu livro sobre o tema, que essa prática existe porque a população paga indiretamente pelos serviços públicos, por meio dos impostos. Por isso, o povo tem o direito de decidir onde e como os recursos devem ser gastos.
A professora ressaltou à Radis que o “controle social” sobre o Estado surgiu no Brasil no contexto de luta contra a ditadura, em que a participação não somente era proibida, como fortemente reprimida. Segundo ela, é preciso desmistificar a ideia de que a sociedade civil e os Conselhos são neutros, porque esses espaços são atravessados pelos interesses tanto do mercado quanto dos setores que defendem os direitos sociais.
Já a participação popular é um processo mais amplo de inclusão dos cidadãos nas políticas públicas. Como Radis abordou em sua edição 144, as formas de participação estão garantidas pela Constituição Federal de 1988. Como exemplos de espaços de diálogo entre o Estado e a população, estão conselhos e conferências de políticas públicas, ouvidorias, consultas populares, reuniões e mesas de negociação.
Participação em números
Por todo o Brasil, são cerca de 80 mil conselheiros de saúde somente na instância municipal, calcula o CNS. Esse número é maior do que o de vereadores existentes no Brasil, que é de 57.420 eleitos em 2012, aponta João Palma. Segundo ele, essa característica dá capilaridade à representação social no SUS. “Nenhuma outra política pública tem esse grau de participação social”, ressalta.
De acordo com a lei da participação no SUS (8.142 de 1990), metade da composição dos conselhos deve ser de usuários. O restante divide-se entre trabalhadores, gestores e prestadores de serviço. Para João Palma, na história do SUS, a entrada dos trabalhadores e gestores também foi uma conquista popular, pois os usuários cobravam que todos os lados estivessem representados. A lei também determina a realização de conferências de saúde a cada quatro anos para avaliar a situação do setor e propor as diretrizes para os próximos anos.
Atualmente são 42 Conselhos e Comissões Nacionais com participação social, em diferentes áreas de políticas públicas. De acordo com a Secretaria Geral da Presidência da República, que cuida da Política Nacional de Participação Social (PNPS), estão marcadas 15 conferências nacionais entre 2015 e 2016, 12 delas já convocadas. Entre aquelas com datas definidas, estão a de Política Indigenista (17 a 20 de novembro de 2015), de Direitos Humanos (28 e 29 de abril de 2016) e LGBT (25 a 27 de abril de 2016). Ainda estão previstas, mas não convocadas, as de esporte, turismo e segurança pública.
Rumo à 15ª
Segundo João Palma, o Conselho Nacional de Saúde tem dois objetivos a concretizar na 15ª: ampliar a participação popular e aumentar a potência em termos de resultado. Para alcançar o primeiro intento, o conselho instituiu um mecanismo para garantir que 40% dos delegados não dependam do número de habitantes do estado, o que daria mais representação a regiões menos populosas e distantes dos grandes centros, como Norte e Centro-Oeste. “Estamos em um esforço de incluir vozes pouco representadas nas políticas públicas, como populações indígenas e quilombolas, ribeirinhos, estudantes, LGBT e outros”, pondera.
Também a realização de conferências livres — experiência trazida dos espaços da juventude — abriu o “microfone” para novos atores. Segundo Palma, a participação de estudantes e jovens este ano tem sido a mais efetiva na história das conferências. “Esperamos fazer a 15ª com a cara do povo brasileiro: uma conferência mais feminina, mais negra, mais indígena, mais jovem, em que a diversidade da população brasileira esteja representada”, ressalta.
Ele também aponta que, desde a 8ª conferência, em 1986, o número de propostas aprovadas tem crescido exponencialmente. Por isso, o conselho criou uma metodologia para que o material dos estados e municípios passe por um debate amplo e venha consolidado pelos delegados. “Com isso, teremos propostas mais densas e com maior capacidade de execução”, explica. O conselheiro também destaca que o processo da conferência não termina na etapa nacional, em Brasília, entre 1º e 4 de dezembro. É preciso, segundo ele, iniciar o acompanhamento das principais diretrizes e propostas aprovadas, para que elas passem a compor os planos de saúde do governo federal e dos estados. Essa é uma forma de dar poder de fato às instâncias de controle social.
Desafios da participação
Nem sempre o que é decidido é cumprido pelos governos municipais, estaduais e federais, aponta Maria Valéria Correia. “As conferências têm muita importância, desde que elas não sejam um espaço cartorial, preparado para que uma participação controlada legitime as ações da gestão”, enfatiza. Ela lembra que, na última Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 2011, os participantes aprovaram a rejeição à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e, poucos dias depois, ela foi criada pela lei 12.550/2011.
Outras “vozes” ignoradas na última conferência reivindicavam o fim da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que retira dinheiro da previdência social (Radis 150). Mesmo com a rejeição dos participantes, a medida foi renovada. Ainda assim, Maria Valéria considera que, em muitos municípios, têm ocorrido conferências de caráter popular e independente, com a mobilização de centenas de representantes de movimentos sociais, como no caso de Belo Horizonte. “A importância desses espaços é o processo pedagógico e formativo que podem desencadear, trazendo informações, temas e debates que mobilizam os setores organizados na sociedade civil”, explica.
De acordo com Maria Valéria, é preciso ter atenção nas propostas em disputa, porque elas são carregadas de interesses que podem fortalecer o sistema público ou desmontá-lo em favor do mercado. Ela também considera que a participação não pode se circunscrever aos espaços institucionalizados. Por isso, a pesquisadora cita a necessidade de fóruns alternativos, formados pelos movimentos sociais, como o caso da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde.
Política da participação
Quando o governo federal publicou o decreto 8.243, em maio de 2014, que criou a Política Nacional de Participação Social (PNPS), houve reações da imprensa e de parte do Congresso Nacional que chamaram a medida de “bolivarista” e “golpista”. A iniciativa organizava instrumentos de participação social já existentes, como consultas públicas, conselhos, conferências e ouvidorias, por meio da criação de um sistema nacional. No entanto, o decreto foi derrubado pela Câmara, em outubro do ano passado, e aguarda apreciação do Senado.
A secretaria da Presidência da República, responsável pela política, informou à Radis que a iniciativa tem se mostrado efetiva na consolidação de plataformas digitais, como a Dialoga Brasil e a Participa.br, que buscam oferecer espaço para que a população possa opinar sobre ações do governo federal. Na Plataforma Dialoga Brasil (
www.dialoga.gov.br), os usuários podem fazer sugestões sobre temas em discussão, comentar ou curtir propostas. De acordo com a secretaria, cerca de 22 mil pessoas já utilizaram a plataforma, em um total de 9.075 propostas. Entre outras ações promovidas pela política, segundo o órgão, está a consolidação do Fórum Interconselhos (formado pelos conselhos nacionais de políticas públicas) como espaço permanente de debate do governo com a sociedade civil.
Em artigo publicado no site “Observatório da Imprensa”, o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), Venício Lima, defende que os setores conservadores da sociedade sempre rejeitaram formas de democracia direta e interferência popular na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas. Quem perde, portanto, é a própria democracia. Já Maria Valéria critica o que chama de “participação por decreto”, principalmente por este ter sido editado menos de um ano após as manifestações de junho de 2013. “Pareceu uma forma de amortização dos conflitos, frente às demandas apresentadas nas ruas”, declara.
Caminhada pelo SUS
Na pauta da 15ª, tanto João Palma quanto Maria Valéria apontam que devem estar as ameaças recentes ao SUS, vindas de projetos que favorecem os interesses privados em prejuízo da saúde pública. Segundo João, é preciso resgatar o espírito presente na 8ª conferência e nas origens do SUS, por meio da garantia de atenção de qualidade e que inove com práticas emancipadoras e humanizadas. Uma das propostas a ser levada aos participantes é a criação da Frente Popular em Defesa do SUS. Também está marcada uma caminhada na abertura da conferência até o Congresso Nacional, como gesto simbólico das lutas em defesa da saúde pública.
http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/157/reportagens/mobilizacao-que-gera-saude