Matheus Lima, 22 anos, e Kleisse Marcelina, 24 anos, com Pietro, filho de dois meses diagnosticado com microcefalia, em SalvadorCom o atual ritmo de expansão, o Brasil pode acumular 15 mil casos de microcefalia até o fim de 2016, estima o infectologista Rivaldo Venâncio, diretor da Fundação Oswaldo cruz (Fiocruz) em Mato Grosso do Sul. Além disso, alerta o especialista, há numerosos casos de bebês expostos ao zika que nascem com o cérebro em tamanho normal, mas depois apresentam alterações congênitas, como problemas oculares e auditivos. “Estamos diante de uma epidemia de zika congênita, de mãe para filho, cuja expressão de maior gravidade é a microcefalia, mas que não é a única e talvez não seja a mais frequente.”
CartaCapital: Quando o vírus foi descoberto?
Rivaldo Venâncio: Em 1947, um grupo iniciou uma pesquisa com macacos em Uganda, na África, para estudar o ciclo silvestre da febre amarela. Um dos animais apresentou sintomas da doença e, para surpresa dos pesquisadores, as amostras de sangue indicaram a presença de um vírus desconhecido, um pouco parecido do ponto de vista genético com aquele da febre amarela ou da dengue, mas não era o mesmo. Esse novo agente foi batizado com o nome da floresta onde esse macaco vivia, Zika Forest. Em 1952, surgiram os primeiros relatos de humanos infectados.
CC: Por que se sabe tão pouco a respeito do zika?
RV: Por décadas, o vírus ficou restrito a comunidades rurais da África e do Sudeste Asiático, além de não apresentar quadros clínicos severos. O paciente tinha um pouco de febre, às vezes nem isso, vermelhidão no corpo, coceira, dores nas articulações. Pouco depois os sintomas desapareciam. Apenas em 2007, quando houve um surto de zika nas Ilhas Yap, na Micronésia, a doença passou a ser mais estudada, até porque essa região do Pacífico tem muitas conexões com a Europa.
- Venâncio estima que o Brasil deve acumular mais de 15 mil casos de microcefalia. Crédito: Peter Ilicciev/Fiocruz
CC: O que se descobriu à época?
RV: Um desses estudos concluiu que entre 75% e 80% dos infectados não apresentavam sintomas. Entre 2013 e 2014, houve uma grande epidemia de zika na Polinésia Francesa. Foram notificados cerca de 8,5 mil casos. Quando se ponderam as subnotificações, estima-se um total de 25 mil casos, quase 10% da população local. Surgiram, então, as primeiras evidências de complicações neurológicas causadas pelo zika, a exemplo da síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune.
CC: Como a síndrome de Guillain-Barré se manifesta?
RV: Normalmente, há dormência, alterações de sensibilidade e de movimentação nos membros inferiores. Mas o quadro pode se agravar e atrapalhar o funcionamento dos esfíncteres, deixando o paciente sem controle para defecar e urinar. No limite, a síndrome pode interferir na musculatura respiratória e levar a pessoa à morte. Daí emergiu a preocupação: esse vírus não é tão “benigno” como se imaginava.
CC: Quando o vírus chegou ao Brasil?
RV: No fim de 2014, verificou-se no Nordeste, em especial no Rio Grande do Norte, a ocorrência de muitos casos de “dengue” com características diferentes daquelas que conhecíamos. Logo de início, os pacientes apresentavam manchas vermelhas no corpo, que coçavam muito, mas sem as dores acentuadas da dengue ou o febrão característico. Em abril de 2015, Gúbio Soares Campos, virologista da Universidade Federal da Bahia, identificou o zika. Pouco depois, surgiram os primeiros casos de associação de Guillain-Barré com o vírus. Então emergiram os casos de microcefalia. As mães relatavam quase sempre a mesma história: durante a gestação, manifestaram sintomas do zika. As suspeitas dessa correlação só cresceram, até os laboratórios começarem a confirmar o diagnóstico de zika em mulheres grávidas cujos bebês estavam com microcefalia.
CC: Uma pesquisa do Instituto Carlos Chagas confirmou que o vírus zika é capaz de ultrapassar a barreira placentária...
RV: Sim, é mais uma evidência. Não sabemos se o zika sofreu alguma modificação genética ao longo dos anos ou se o fato de emergir num país com grande incidência de dengue teve alguma influência. Mas não tenho dúvidas de que a microcefalia está diretamente associada ao vírus. E insisto em um ponto: não estamos diante de uma epidemia de microcefalia causada pelo zika. Estamos diante de uma epidemia de zika congênita, de mãe para filho, cuja expressão de maior gravidade é a microcefalia, mas que não é a única e talvez não seja a mais frequente.
CC: Que outras consequências o zika pode causar aos bebês?
RV: Temos observado com preocupação numerosos casos de crianças que nascem com o cérebro de tamanho normal, mas depois apresentam alterações congênitas, como problemas oculares, inclusive cataratas, ou problemas auditivos, alguns chegando à surdez. Há ainda casos de microcalcificação no fígado, no coração, no cérebro, que certamente terão repercussões para o desenvolvimento neuropsicomotor dessa criança.
Pelo ritmo de expansão, deveremos acumular 15 mil casos de microcefalia até o fim de 2016, número que poderá ser até maior, se levarmos em conta que 87% dos casos estão concentrados no Nordeste. Mas não convém colocar uma lupa nos casos de microcefalia e ignorar as evidências de crianças que podem desenvolver outros tipos de sequelas.
CC: Apenas o mosquito Aedes aegypti é capaz de transmitir o zika?
RV: Estamos diante de um fato novo na história da saúde pública e da medicina. Todas as hipóteses para explicar o que estamos observando são consideradas. Uma das linhas de estudo diz respeito a outros tipos de mosquitos que também poderiam transmitir o vírus zika. Fala-se sobre a possibilidade de o pernilongo Culex estar envolvido, e isso precisa ser investigado. Também há dois relatos na literatura científica mundial sobre transmissão sexual, mas não há mais relatos. De qualquer forma, também requer atenção.
CC: Na melhor das hipóteses, uma vacina eficaz contra o zika levaria três anos para ficar pronta, estimam especialistas. O que fazer até lá?
RV: Precisamos refletir sobre vários aspectos. Primeiro, sobre as razões dessa epidemia. Vejo muita gente colocando a culpa na Copa de 2014, como se o Brasil só tivesse recebido turistas estrangeiros durante esse torneio. É um raciocínio simplista. O grande problema são as condições estruturais para a existência do mosquito, fruto de um modelo de desenvolvimento adotado pelo País nos últimos 500 anos.
- Falta de saneamento e de coleta de lixo agrava o problema. Crédito: José Cruz/Agência Brasil
CC: O senhor se refere à falta de saneamento básico, de abastecimento de água tratada, de coleta de lixo regular e adequada...
RV: Exatamente. O esvaziamento do campo criou essas regiões metropolitanas gigantescas, que cresceram nos últimos 50 anos de forma absolutamente desordenada. Então, criamos um país essencialmente urbano, sem as condições para uma convivência minimamente amigável desse cidadão com o meio ambiente que o cerca. Além das questões estruturais do saneamento, do abastecimento de água e tal, há também um problema cultural. A população ainda não entendeu que produzimos lixo em excesso, e o descartamos de forma bastante inadequada.
Outra reflexão necessária é sobre a estratégia usada no combate ao mosquito. Nos últimos 30 anos, lançamos mão de uma metodologia para resolver um problema que não está dando certo. Essa metodologia foi ótima na época do Oswaldo Cruz, mas para o Brasil atual não dá mais certo. Precisamos ter humildade para admitir isso. Reparei nas redes sociais um frisson com uma declaração do ministro da Saúde, Marcelo Castro. Ele reconheceu que o Brasil está perdendo feio a batalha contra o Aedes. É a mais pura verdade. Queriam que ele dissesse o quê?
http://www.cartacapital.com.br/blogs/cartas-da-esplanada/201cbrasil-deve-acumular-15-mil-casos-de-microcefalia-ate-o-fim-do-ano201d