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Atenção, consumidor, para a oferta: seguros de saúde abaixo do preço do mercado’. A proposta de planos populares, recém-encaminhada pelo governo Temer para avaliação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a princípio pode até parecer uma daquelas promoções irresistíveis, mas especialistas alertam que quem se encantar pelo anúncio vai acabar recebendo menos do que espera. Como se pagasse por um, mas levasse meio. No texto elaborado por um grupo de trabalho organizado pelo Ministério da Saúde, pede- -se a abertura de brechas na regulação do setor privado, permitindo redução do rol de procedimentos, limitação regional, aumento de prazos de atendimento, reajustes de preços acima do teto atual e coparticipação de até 50% a cada vez que o usuário precisar recorrer a um serviço.
Em 8 de março, o Ministério da Saúde encaminhou à ANS as propostas elaboradas pelo Grupo de Trabalho para discutir o projeto de Plano de Saúde Acessível em um documento de duas páginas e meia, assinado pelo secretário de Atenção à Saúde, Francisco de Assis Figueiredo. “A discussão não foi transparente. Cada uma das medidas significa um tipo de restrição ao acesso. São pontos críticos que já vêm sendo questionados nos tribunais e agora se pretende aliviar a fiscalização para favorecer as empresas”, opina o vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador associado do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Antônio Sestelo. Do grupo de trabalho participaram, segundo o ministério, mais de 20 instituições ligadas à Saúde Suplementar, como a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), a Unimed e a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg), além de representantes da pasta e da Agência Nacional de Saúde Suplementar. “As reuniões não incluíram entidades que historicamente acompanham a regulação do setor, como as de defesa do consumidor e de representação dos profissionais de saúde”, aponta o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e também vice-presidente da Abrasco, Mário Scheffer. O governo chegou a afirmar, em nota, que o Conselho Federal de Medicina (CFM) participara das discussões, o que foi negado: “Vários convites foram encaminhados, mas todos foram recusados, pois o CFM não acredita na pertinência e na eficácia dessa proposta”. O Ministério da Saúde admitiu que errou e então corrigiu que o conselho não oferecera contribuições à proposta encaminhada à ANS.
O documento inclui três propostas. A primeira, de um plano chamado “simplificado”, que teria cobertura para atenção primária, incluindo consultas nas especialidades previstas pelo CFM, serviços auxiliares de diagnóstico e terapias de baixa e média complexidade, mas excluindo internação, terapias e exames de alta complexidade, atendimento de urgência e emergência e hospital dia. A segunda, de plano ambulatorial e hospitalar, prevê cobertura de atenção primária, atenção especializada, de média e alta complexidade, mas para acessar esses serviços o paciente passaria obrigatoriamente pela avaliação de um médico da família ou da atenção primária. No caso de indicação de atendimento hospitalar, ainda precisaria passar por uma segunda avaliação médica que reafirmasse a necessidade do procedimento. A terceira proposta, de um plano em regime misto de pagamento, autorizaria o copagamento pelo usuário de serviços hospitalares, ambulatoriais, terapias de alta complexidade e medicina preventiva, em até 50% dos valores previstos em contrato.
“Nosso posicionamento é contrário a qualquer proposta neste sentido. Saúde é direito de todos e dever do Estado e, por isso, reafirmamos os princípios norteadores do SUS: universalidade, integralidade e igualdade”, diz o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ronald Ferreira dos Santos. O CNS aprovou moção de repúdio aos planos populares durante sua 291ª Reunião Ordinária, no mesmo dia em que a proposta foi apresentada. A moção critica tanto a existência do grupo de trabalho e o texto formulado por ele quanto “a iniciativa do governo federal de propor ações que contrariem os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde”.
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que “não propôs e não opina” sobre nenhuma das medidas elaboradas pelo grupo de trabalho: “Visando dar alternativa aos 2 milhões de brasileiros que perderam seus planos de saúde, a participação do ministério foi reunir, para discussão, as instituições”. Porém, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, anunciou publicamente sua intenção de autorizar a venda de planos de saúde populares assim que assumiu a pasta (Radis 168). A premissa seria a de aliviar os gastos com o financiamento do SUS. “Queremos mais recursos e, como estamos nessa crise fiscal, se tivermos planos acessíveis com modelos de que a sociedade deseje participar, teremos R$ 20 bilhões ou R$ 30 bilhões a mais de recursos que serão colocados para atendimento de saúde. Isso vai aliviar nosso sistema, que está congestionado”, defendeu Ricardo Barros, à época.
Planos limitados a consultas ambulatoriais e a exames de menor complexidade, possivelmente com a exclusão de doentes crônicos e idosos, não evitarão a procura pela rede pública, avalia Mário Scheffer. “Historicamente, o SUS já é uma espécie de resseguro do sistema privado: pessoas que têm planos de saúde são empurradas para o sistema público quando precisam da alta complexidade, de urgência e emergência, de terapia renal substitutiva, de cirurgia cardíaca. Planos de cobertura restrita a consultas e exames não vão desafogar o SUS”.
Para ele, a origem da discussão não é a oferta de mais opções para os brasileiros, mas a perda de mercado das seguradoras diante do desemprego e da queda da renda. “Essas empresas sentiram a recessão e quiseram criar produtos que possibilitassem sua recuperação financeira”. A análise de Scheffer encontra ressonância no próprio documento encaminhado à ANS, em que as únicas justificativas para sustentar a proposta de planos acessíveis dizem respeito à economia.
“Cumpre destacar que a crise econômica que o país atravessa ao longo dos últimos três anos tem impactado diretamente no mercado de trabalho. Em agosto do ano de 2016, o desemprego aberto atingiu 12 milhões de pessoas. Atualmente cerca de 80% dos vínculos ativos de planos de saúde se concentram nos planos de saúde coletivos adesão ou empresarial), assim, o mau desempenho do mercado de trabalho afeta diretamente o mercado de saúde suplementar”, trata o texto. E continua: “Dados levantados pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) alarmam que a redução de beneficiários em planos médico-hospitalares, especificamente, em doze meses, foi de 3,05% chegando a 48,6 milhões de beneficiários em junho de 2016. Nesse mesmo levantamento constatou-se que em junho de 2015 o número de beneficiários era superior a 50 milhões. Como se vê, a redução da massa segurada eleva as despesas per capita das operadoras e impacta na precificação do produto, o que dificulta ainda mais o acesso da população à saúde suplementar”.
Também segundo o Conselho Federal de Medicina, a autorização de venda de “planos populares” apenas beneficiará os empresários da saúde suplementar e não solucionará os problemas do Sistema Único de Saúde. A entidade reiterou nota divulgada em 5 de agosto de 2016, quando o governo anunciou a organização do grupo de trabalho. “Propostas como a de criação de ‘planos populares de saúde’ apropriam-se e distorcem legítimos desejos e anseios da sociedade”, segundo a entidade, que defendeu o fim do subfinanciamento, o aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão, a criação de políticas de valorização dos profissionais, como uma carreira de Estado para os médicos, e o combate à corrupção.
O Instituto Br asileiro de Defesa do Consumidor (Idec) afirma que os planos acessíveis não têm condições de oferecer serviços de qualidade e que deem segurança ao consumidor, podendo causar graves prejuízos, inclusive fazendo ‘explodir’ a judicialização da saúde suplementar — ou seja, a quantidade de ações judiciais contra as operadoras. “Os planos populares são produtos-placebo — simulações de plano de saúde, não sustentáveis para o consumidor, que, se implementados, implicarão em mudanças radicais, para pior, na atual legislação sobre o tema”.
Para o Idec, um dos pontos muito problemáticos da proposta é a ampliação de coparticipação — quando o usuário precisa pagar um determinado valor pelo serviço que for utilizar, além do valor da mensalidade — para no mínimo 50% do valor do procedimento. “A coparticipação é um instrumento criado para fazer o usuário do plano não usar os serviços de saúde. Com isso, o consumidor adia consultas e exames e atrasa a prevenção e o diagnóstico precoce. E é mais grave no caso de doentes crônicos e idosos, que são os mais prejudicados com essa medida”, afirma o instituto. No índice de reclamações da ANS, a coparticipação está entre os itens de destaque, junto com a franquia e as autorizações prévias para procedimentos. Outro ponto considerado mais problemático são os reajustes de planos individuais segundo tabela de custos, sem regulação ou com regulação mais frouxa, permitindo que as operadoras fixem aumentos superdimensionados no decorrer da relação contratual. “Isso abre margem para que as operadoras ofereçam um plano artificialmente barato, para ganhar o consumidor e, a partir do primeiro reajuste, aumentar consideravelmente o valor da mensalidade”.
O instituto também critica a obrigatoriedade de segunda opinião médica — que pode funcionar apenas para negar internações e procedimentos caros e complexos, impedir atendimentos de urgência, tratamentos de câncer, de transtornos mentais, órteses, próteses, fisioterapia, transplantes — e o alongamento dos prazos de atendimento — para algumas especialidades, o grupo de trabalho propôs aumentar a espera de 14 para 30 dias; no caso de cirurgias eletivas e programadas, de 21 para 45 dias. “A fim de reduzir custos, as operadoras contratarão uma rede conveniada ou credenciada menor, procurando também pagar menos aos prestadores. Com poucos serviços conveniados será ainda maior a dificuldade de agendar exames e consultas com médicos e de encontrar hospitais e laboratórios de qualidade”, avalia o Idec, reforçando que o controle de prazos de atendimento é a única forma estipulada pela ANS capaz de mensurar a capacidade de rede assistencial.
No texto do grupo de trabalho, ainda há menção a planos regionalizados, com “cobertura adaptada à disponibilidade de infraestrutura no município”. Assim, se permitiria que em determinadas localidades os planos não cumprissem a cobertura mínima estipulada pelo rol de procedimentos da ANS. O Idec reitera que o rol de cobertura mínima obrigatória instituído pela lei dos planos de saúde é direito do beneficiário, estabelecendo que as operadoras devem garantir a realização de todos os procedimentos nele previstos por meio da rede assistencial própria, credenciada, contratada ou referenciada, independentemente da abrangência do plano ou da capacidade operacional da operadora. “Possibilitar que a operadora ofereça apenas alguns dos procedimentos previstos no rol, sob o argumento de que na região de contratação do plano estes serviços não estão disponíveis, aumenta a desigualdade na prestação dos serviços, já que alguns municípios e regiões não contam com uma boa estrutura de equipamentos de saúde”, orienta o Idec.
Ou seja, o que pesquisadores e entidades criticam não é a oferta de planos de saúde baratos, mas a exclusão embutida neles. Nesse mercadão da saúde, o barato sairia caro demais. “A assistência à saúde custa caro — não é à toa que o SUS precisa de mais recursos. Quando o preço é reduzido dessa forma, seu plano vira uma caixinha de surpresa, e o que a pessoa deixou de pagar na mensalidade vai lhe faltar de várias formas: ou por restrição de serviços ou pela necessidade de copagamento”, pondera Scheffer.
Planos ‘baratos’ já existem, lembra ele. A maior parte dos 48 milhões de brasileiros que têm seguro de saúde (médico ou odontológico) gastam até R$ 200 para pagar a mensalidade, mais exatamente 57,6%. Outros 13,4% pagam entre R$ 200 e R$ 300; 14,1% desembolsam de R$ 300 a R$ 500; 10,2%, de R$ 500 a R$ 1.000; e 4,7%, mais de R$ 1.000 por mês, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde 2013, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em convênio com o Ministério da Saúde. Esse levantamento aponta que 27,9% dos brasileiros tinham algum plano de saúde (médico ou odontológico) em 2013, com forte variação regional — no Sudeste, 36,9% da população; no Sul, 32,8%; no Centro-Oeste, 30,4%; no Norte, 13,3%; e no Nordeste, 15,5%.
“Existe um nicho nesse mercado de planos com preços menores, e é justamente onde os usuários mais enfrentam problemas com redes conveniadas que não dão conta de entregar o que foi acordado”, afirma Scheffer. Planos ambulatoriais que só incluem consultas e exames, sem internação, já são vendidos, mas só representam 4% do mercado. “É um modelo rechaçado pelas famílias e pelos empregadores, considerado de menor qualidade. As pessoas têm discernimento para saber que a internação, quando necessária, tem um custo mais alto. Por isso, pouca gente quer”. A proposta de planos populares está agora na Agência Nacional de Saúde Suplementar, que irá compor outro grupo de trabalho, formado por servidores de todas as diretorias e da Procuradoria Geral da agência para avaliar, técnica e juridicamente, sua viabilidade. A agência afirma que, ao fim desse processo, irá convidar representações da sociedade, como os órgãos de defesa do consumidor, entidades médicas e de saúde e representantes da academia, para participar do debate sobre o tema.