“Fake news” de 1998 ainda alimenta onda de rejeição à vacina do sarampo
Autor: Por Cecília Figueiredo, do Saúde Popular
05/09/2019
Crédito Imagem: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados
Claudio Maierovitch, da Fiocruz Brasília, diz que subfinanciamento em comunicação e serviços dificultam prevenção
“A prevenção é a vacina”. Essa é a conclusão do médico sanitarista da Fiocruz Brasília, Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, ao analisar o aumento do número de casos do sarampo no Brasil. A doença é grave e contagiosa, mas pode ser prevenida e tem cura. Um dos maiores desafios nesse processo é enfrentar a onda de “fake news” — notícias falsas — que se espalham há pelo menos 21 anos denunciando supostos efeitos negativos da imunização contra o sarampo.
Em 2016, ano do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff (PT), o Brasil foi certificado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) como território livre da doença, e dois anos depois passou a registrar surtos contínuos. Mortes em decorrência de sarampo não ocorriam desde 1997 no país.
Durante a entrevista concedida ao Saúde Popular/Brasil de Fato, o médico e ex-diretor do Departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde (MS) explicou que, no período em que a doença perdeu força no país, gerações inteiras não tiveram contato com o vírus do sarampo. Houve um relaxamento em relação ao temor que a doença provocava antes da década de 1980, quando passou a ser iniciada a vacinação. Consequentemente, a preocupação com a prevenção também diminuiu.
O vírus que chegou à região Norte do Brasil no ano passado tinha as mesmas características daquele que circulava pela Venezuela desde julho de 2017. O deste ano, entretanto, é distinto: entrou no Brasil por meio de viajantes vindos de Israel, Malta e Noruega.
Porém, se o país estivesse com altas taxas de coberturas vacinais, a circulação do vírus com os fluxos migratórios não seria problema, explica Maierovitch.
Dentre os estados que tiveram casos confirmados de sarampo em 2018, apenas Pernambuco alcançou cobertura vacinal acima de 95% para a primeira dose da vacina, conforme dados do Ministério da Saúde.
Entre início de 2018 e 2019, foram 10.302 casos e 12 óbitos no Brasil, a maior parte na região Norte. Este ano, a concentração de casos da doença e mortes está na maior cidade brasileira. O estado de São Paulo lidera o ranking de casos, com 2.457 pessoas que já adoeceram, em 89 cidades, das quais três morreram — entre elas, dois bebês, confirmados no último dia 30. Segundo o último balanço da Secretaria Estadual de Saúde, divulgado no dia 28 de agosto, 90% dos casos estão na Região Metropolitana, sendo 1.637 na capital.
O surto de sarampo tem nível global. A incidência da doença triplicou em relação ao mesmo período no ano anterior, alcançando 364.808 casos registrados em 182 países. A Opas já considera que esta é a pior onda mundial de surtos de sarampo desde 2006.
Segundo o médico, há uma variedade de fatores que levaram a esse relaxamento com relação às vacinas. A repercussão de notícias falsas, profissionais da homeopatia que não acolhem a imunização e filosofias religiosas antivacina contribuem para alimentar a descrença essa medida de proteção à saúde. Porém, o desfinanciamento em comunicação — campanhas informativas — e nos serviços da Atenção Primária são fatores importantes a se observar para que uma doença curável esteja novamente resultando em óbitos.
Confira os melhores momentos da entrevista:
Saúde Popular: Como se inicia essa onda de negação às vacinas? Existe algum estudo que indica isso, principalmente em relação ao sarampo, uma doença que já havia sido erradicada no Brasil?
Claudio Maierovitch: É possível que exista, mas eu não conheço um estudo histórico da negação [da vacinação], de como isso se comporta ao longo da história. Tem um marco específico da vacina do sarampo, que é decorrente de uma fraude publicada na revista The Lancet, de 1998. O médico [Andrew Wakefield] que liderou o estudo, mais tarde, teve uma vinculação comprovada com interesses financeiros. Esse estudo concluía uma associação entre o uso da vacina Tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e o autismo em crianças.
Isso gerou uma grande comoção à época, começando da Inglaterra e se espalhando em boa parte do mundo ocidental, porque foi um estudo inusitado e muito divulgado. Meses depois, se demonstrou que havia fraude nesse estudo. A revista [The Lancet] se retratou, retirou o seu aval para o estudo, e o próprio médico teve seu registro cassado na Inglaterra. Porém, vive agora nos EUA e é um dos líderes de grupo antivacina.
Existem outras origens. A homeopatia, nas suas origens teóricas, não acolhe a ideia da vacinação. Isso não significa que a maior parte dos homeopatas seja contra a vacina, mas há muitos que são. Tivemos alguns episódios, como o surto de sarampo há mais ou menos oito anos, em São Paulo, na região do Butantã, que atingiu principalmente crianças de uma escola antroposófica, em que havia alguma conexão com esse tipo de enfoque, de recusa a se vacinar em função de uma doutrina.
Há um estudo de surtos de sarampo na Holanda que mostram uma concentração de casos no que eles chamaram de Bible Belt — Cinturão da Bíblia –, uma faixa do país com uma presença muito grande de escolas religiosas, muitas das quais também não admitem e não acolhem o uso de vacinas.
Existem filosofias de diversas cores e matizes que também rejeitam o uso de vacina. Há também dificuldades históricas para a vacinação em países muito pobres e zonas de conflagração. São vários os fatores.
A partir de 2016, com a Emenda Constitucional 95, os gastos com saúde foram congelados. Até que ponto isso dificulta as campanhas publicitárias massivas da vacinação?
Eu não tenho o dado detalhado em relação a isso, porque teria que entrar num nível de detalhe que não está disponível de forma fácil, que são os dados de orçamento. Porém, um aspecto importante em relação à vacinação são as campanhas de comunicação. Parece que houve neste período menos investimento em comunicação em relação à atividade de vacinação.
Outro aspecto que é essencial para a vacinação funcionar bem é que as unidades básicas de saúde funcionem bem. Faz parte das atividades de quem trabalha nos bairros, nas localidades, levar informação sobre saúde e medidas de prevenção. Se o sistema está mal financiado, faltam funcionários, veículos ou outros meios de transporte, há mais dificuldade em realizar isso [o trabalho nos bairros].
A internet tem contribuído para a descrença na imunização?
O crescimento, nos últimos anos, de notícias falsas pode ter contribuído de maneira importante para o receio da vacinação.
Outra característica das redes sociais é que essas notícias são muito redundantes. As pessoas recebem várias vezes notícias muito parecidas, o que gera uma espécie de viés de confirmação.
Há denúncias que a Covisa [Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de São Paulo] está em franca desestruturação, com remoção de servidores, aposentadorias e sem novos concursos. Qual a importância de se manter uma estrutura de Vigilância em Saúde para planejamento e análise de situações como o surto de sarampo em São Paulo?
Não estava acompanhando essa desestruturação da Covisa, mas a estrutura [central] que recolhe informações, analisa e coordena a atividade de vacinação é absolutamente essencial — para que a vacinação atinja quem deve atingir na rotina, identificando vazios em áreas com menor cobertura, mudanças no desenho da cidade.
Tudo isso é importante quando se desenha a estratégia de vacinação. Ainda mais em ocasião de surto, de crise, para que se faça um plano cuidadoso de bloqueio vacinal [visitas de agentes de saúde a casas, locais de trabalho e escolas para vacinar as pessoas].
Afinal de contas, qual a melhor forma de prevenção para o sarampo?
A prevenção é a vacina. Agora, quando se pensa em população, e não em indivíduos, a vacina tem que estar combinada a outras estratégias, como isolamento dos casos. Se uma criança ou adulto apresentar febre, tosse ou coriza, manchas no corpo, melhor ser retirada do convívio social.
E o tratamento?
Não existe um tratamento específico para o vírus do sarampo. São os cuidados gerais: manter a hidratação, alimentação, a observação para ver se não surgem outras infecções concomitantes, até que a infecção viral seja superada pela própria defesa do organismo.