Notícia
O vice-presidente do SindSaúde-SP, Hélcio Marcelino, e a doutora em sociologia, Ana Cláudia Moreira Cardoso, escreveram em parceria o artigo “Precariedade, o lado sombrio das tecnologias da Saúde”, que aborda os impactos negativos do uso de dados e inteligências artificiais na saúde.
O artigo foi publicado na Revista da Faculdade do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de Ciências do Trabalho e no site “Outras Palavras”. Leia o artigo na íntegra abaixo ou acesse ao site Outras Palavras, clicando aqui:
Precariedade, o lado sombrio das tecnologias da Saúde
Imagens, uso de dados e inteligência artificial poderiam multiplicar potência dos diagnósticos e tratamentos. Mas, juntas, vêm péssimas condições de trabalho, jornadas massacrantes, insegurança profissional e diluição de responsabilidades
O advento da pandemia da Covid 19 acelerou os investimentos em tecnologia digital na área de saúde, tanto no que se refere à organização e realização do trabalho como na relação com os(as) usuários(as). Houve um maior investimento em aparelhos portáteis e pessoais que, a partir da utilização da Internet das Coisas – IoT e do big data, conseguem tornar as análises clínicas cada vez mais precisas. Também estão sendo desenvolvidos programas para aparelhos celulares e relógios tornando possível escanear todo o corpo do(a) paciente e apresentar rapidamente resultados de exames que até hoje só são possíveis nas clínicas, laboratórios ou hospitais.
Há países como a China (Manzano1), onde o(a) paciente, via um aplicativo, envia as informações sobre seu estado de saúde para a realização de diagnósticos simples. Estima-se que muito em breve, diversos exames passarão a ser analisados em qualquer localidade, ou mesmo em qualquer país. Tais mudanças terão impactos no emprego pois alguns laboratórios serão fechados gerando desemprego e outros serão abertos em outras localidades (ou outros países), com a geração de poucos empregos dado que parte do trabalho passa a ser digital.
No caso da telemedicina, consultas de várias especialidades médicas passaram a ser realizadas através de plataformas eletrônicas de comunicação, evitando o comparecimento do(a) médico(a) e, sobretudo do(a) paciente, nos espaços físicos onde teriam que se expor a outras doenças e microorganismos. Pesquisa realizada pelo grupo Clínica Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná2 aponta que o setor de telemedicina cresceu muito e faz referência a plataformas como Amplimed, Comesco, Imedicina, Telemedina, Marsch, Conecta Médico, Dodelay e Doutor ao Vivo. Há ainda as plataformas que nascem em meio a iniciativas do ministério da Saúde e o ministério da Economia, como a portaria n.467 de 20.03.20203 que dispõe, em caráter excepcional e temporário, sobre ações de telemedicina; e a plataforma SineSaúde (https://portalsinesaude.powerappsportals.com), onde profissionais da saúde podem inserir tanto o currículo como a disponibilidade para trabalho.
No que se refere às plataformas de trabalho, mesmo ainda sendo incipientes no setor, é de se esperar sua ampliação. Afinal, além do contexto pandêmico, as plataformas se aproveitam da conjuntura política brasileira de redução da presença do Estado e ampliação do espaço do mercado, de que são exemplos: (i) o projeto de Reforma Administrativa, que pretende acabar com a estabilidade de servidores públicos; (ii) a interpretação feita pelo Supremo Tribunal Federal – STF da Lei 13.429/2017, possibilitando a terceirização em áreas fim tanto no serviço público de saúde como no privado; (iii) a criação do trabalho intermitente pela Reforma Trabalhista de 2017; e (iv), não menos importante, a aceitação, por parte do Estado, das regras impostas pelas plataformas de trabalho em relação aos(as) trabalhadores(as), pacientes e ao próprio Estado.
A entrada das empresas-plataforma de trabalho e de telemedicina no setor de saúde coloca diversas preocupações que dizem respeito à qualidade e quantidade dos empregos no setor, à qualidade dos serviços prestados, à responsabilização pelo trabalho realizado e ao acesso da população aos serviços digitais.
Do ponto de vista dos usuários, e sem desconsiderar as vantagens da telemedicina, nos indagamos como fará a população que não tem facilidade e/ou condições para lidar com o mundo digital. Diversos estudos demonstram o problema da desigualdade sociodigital que atinge, sobretudo, grupos formados por pessoas idosas, negras, das classes D e E e mulheres4. O que garante que o atendimento digital seja uma possibilidade a mais, e não a única opção? Se tomarmos como referência o processo de digitalização em outros setores, como no bancário, podemos pensar que a substituição parece um caminho muito mais provável do que a ampliação de possibilidades de acesso à saúde.
Em relação ao mercado de trabalho, além do que já citamos sobre as análises de exames, as plataformas de telemedicina, no Brasil, já estão levando à extinção de funções como recepcionistas, auxiliares que fazem os preparos pré-consultas e secretárias que controlam o agendamento e fazem o arquivamento de prontuários, dentre outras.
Por outro lado, os procedimentos não absorvíveis por máquinas, como curativos, medicações ou fisioterapias já estão sendo ofertados por empresas-plataforma de trabalho, como a Getninjas, Voxline Healtcare, KDcore, Axishealth. Tais plataformas, entre outras, oferecem aos(as) pacientes a possibilidade de demandarem profissionais de saúde para realização de tarefas específicas e procedimentos não absorvíveis por máquinas.
Em relação à qualidade do trabalho, considerando que as plataformas externalizam os riscos e os custos laborais, mas, também, as responsabilidades, as questões que se colocam são: “quem”/“qual instituição” irá confirmar e fiscalizar a capacitação e especialização dos(as) trabalhadores(as)? Caso algum erro seja cometido, quem será responsabilizado? Somente os(as) trabalhadores(as)? Ou os(as) próprios(as) pacientes, dado que foram estes(as) que escolheram o(a) profissional via uma plataforma de trabalho?
As plataformas de trabalho não detêm nenhum conhecimento na área de saúde – elas simplesmente se espraiam para setores em expansão. Um exemplo é a plataforma de trabalho Brigad, lançada em 2016 e presente em diversos países europeus, e que oferece serviço na área de hotelaria e restauração5. Em março de 2020, no início da pandemia da Covid-19, esta mesma plataforma expande sua atuação para a área da saúde.
De acordo com o site da Brigad Health (https://brigad.co/en-GB/healthcare/), a plataforma oferece acesso à “freelancers qualificados para turnos flexíveis de um dia a um mês, sendo estes profissionais autônomos e com seus diplomas e experiências validados pela plataforma”. Mas o que significa a plataforma “validar” um diploma e a experiência de trabalhadores(as), sobretudo se, ao mesmo tempo, ela deixa claro que o resultado do trabalho não é sua responsabilidade?
Outro aspecto a ser considerado é que o trabalho em saúde, de acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS, é altamente desgastante tanto em seus aspectos físicos como psicológico, de forma que a carga horária laboral máxima deve ser de 30 horas semanais. Mas como garantir que o(a) trabalhador(a) não irá extrapolar uma carga horária aceitável para manutenção da sua saúde frente às baixas remunerações praticadas pelas plataformas?
A OMS indica, igualmente, que o trabalho seja desenvolvido por equipes multiprofissionais, levando em conta todos os aspectos da vida humana. Aliás, os coletivos de trabalho têm papel importantíssimo, e não apenas na área de saúde, possibilitando o compartilhamento de experiências e dicas, a divisão de responsabilidades e o apoio necessário ao desempenho do trabalho e à saúde de quem trabalha. Isso porque a ausência desse apoio coletivo contribui para o processo de adoecimento, gerando patologias como estresse, depressão, ansiedade e doenças cardiovasculares6.
A questão da formação continuada dos(as) profissionais da área de saúde também é muito relevante, pois o setor passa por processos de inovação em alta velocidade no que se refere a aparelhos, medicamentos e cuidados. Estas transformações demandam estudos e treinamentos periódicos através das Comissões de Controle de Infecções Hospitalares – CCIH’s. Mas, como manter esses procedimentos e condições indispensáveis ao exercício profissional seguro, tanto ao(a) trabalhador(a) como ao(a) usuário(a), quando as condições de trabalho são responsabilidades dos(as) próprios(as) profissionais e estes(as) vivem na insegurança em função da ausência de vínculo de trabalho com as plataformas?
O contexto atual também nos coloca outras questões. Como garantir a saúde coletiva em conjunturas pandêmicas onde a operação de ações de saúde passe a ser feita por profissionais sem nenhum vínculo e empresas que nada conhecem sobre saúde? Será que a população está consciente desses problemas e disposta a correr esses riscos? Afinal, não se trata da produção de algum bem de consumo que, tendo defeito, pode ser descartado, mas sim de órgãos e sistemas biológicos, ou seja, seres humanos. Uma ferida na perna infectada por um curativo mal feito, poderá ser descartada? Um fígado envenenado por uma medicação errada ou em dose incorreta poderá ser descartado?
Tais questões, em diálogo com o que já foi analisado em outros textos desta série, nos fazem refletir sobre os motivos e argumentos que sustentam o fato de os(as) trabalhadores(as) em empresas-plataforma não terem direito às conquistas realizadas pela classe trabalhadora ao longo da história e serem considerados trabalhadores(as) de “segunda-classe”. O que justifica não serem incluídos nas legislações já presentes na sociedade brasileira como a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, a Constituição Federal – CF e as legislações específicas do setor de saúde?
1 Ver: https://cdtufpr.com.br/a-plataformizacao-e-a-transformacao-mais-radical-do-trabalho-desde-a-2a-revolucao-industrial-diz-pesquisador-da-clinica-direito-do-trabalho-da-ufpr/
2 Ver: https://cdtufpr.com.br/plataformas-digitais-de-trabalho-avancam-nos-setores-de-saude-e-educacao/
3 Ver: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-467-de-20-de-marco-de-2020-249312996 e https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/junho/plataforma-digital-de-empregos-auxilia-area-da-saude-durante-pandemia
4 NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR. Desigualdades digitais no espaço urbano: um estudo sobre o acesso e uso da Internet na cidade de São Paulo. Cadernos NIC.br, Estudos Setoriais. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019.
5 CARDOSO, A.C.M.; OLIVEIRA, M. C. B. A E-Economia e suas Empresas-Plataforma: modus operandi e precarização do mercado de trabalho no setor de turismo. Anais Brasileiros de Estudos Turísticos, v. 10, n. 1, 2 e 3, 2020.
6 THÉRY, L. (org). Le travail intenable: résister collectivemente à l´intensification du travail. Paris: La Découverte, 2006 e KARASEK, R. e THEORELL, T. Healthy work, stress, productivity and the reconstruction of working life. New York: Basic Books, 1990.
Hélcio Aparecido Marcelino é vice presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaudesp) e Secretário Executivo de Organização e Políticas Sindicais da Central Única dos Trabalhadores - CUT/SP.
Ana Cláudia Moreira Cardoso é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP e Universidade de Paris 8, pós-doutora pelo Centre de Recherche Sociologique et Politique de Paris – CRESPPA e pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora, do DIEESE e do GT Trabalho Digital da REMIR.