STF devolve um direito aos trabalhadores da saúde com vínculo CLT
Autor: Joana Cabete Biava*
06/05/2020
Na semana do Dia do(a) Trabalhador(a), em meio a tantas perdas de vidas e direitos, as trabalhadoras e os trabalhadores da saúde com vínculos de emprego regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tiveram enfim uma boa notícia
[1]. Em votação do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 29 de abril de 2020, dois artigos da Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020, foram suspensos: o Artigo 29, que restringia a possibilidade de enquadramento da contaminação pelo Covid-19 como doença ocupacional, e o Artigo 31, que restringia a atuação dos Auditores Fiscais do Trabalho
[2]. Trata-se da segunda redução do escopo da MP 927, após o recuo do presidente em relação a um dos seus pontos mais polêmicos, no dia seguinte à sua edição
[3].
Com a revogação do Art. 29, reverte-se ao menos uma das injustiças dessa MP, que teria impactos severos para os trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente no combate à epidemia da Covid-19 e que já contabilizam afastamentos e óbitos por conta da contaminação pelo vírus. Em menos de duas linhas
[4], o Art. 29 praticamente inviabilizava as possibilidades de um trabalhador contaminado acessar os direitos vinculados às doenças ocupacionais, o auxílio-doença-acidentário, a estabilidade provisória, a aposentadoria por incapacidade permanente e a pensão por morte, obrigando o(a) trabalhador(a) a comprovar o nexo causal de seu adoecimento.
Ou seja, o(a) trabalhador(a) precisaria comprovar que pegou o vírus na atividade laboral e não em outra situação. Essa comprovação, de início já difícil de ser feita, fica cada vez mais impossível com a evolução da epidemia, o que fragiliza a situação do(a) trabalhador(a) que adoece ou da família do(a) trabalhador(a) que morre em decorrência da doença.
Os casos graves da infecção causada pelo novo coronavírus costumam ter uma evolução e recuperação demoradas, e as suas sequelas ainda estão sendo identificadas e pesquisadas, conforme avança a epidemia. Sabe-se, no entanto, que os(as) trabalhadores(as) da saúde estão sujeitos a uma carga viral mais elevada do que a maioria da população e, em decorrência disso, podem estar desenvolvendo quadros mais graves, inclusive com uma incidência maior de óbitos. A descaracterização da Covid-19 como doença ocupacional, que valia para qualquer trabalhador(a) CLT, era, portanto, mais grave para os(as) trabalhadores(as) da saúde, e sua suspensão é um alívio para eles(as) e suas famílias.
Possibilidade de extensão das jornadas de trabalho dos(as) trabalhadores(as) da saúde por meio de acordo individual está mantida
Além de mais expostos à contaminação na sua atividade regular, muitos(as) trabalhadores(as) da saúde devem ter suas jornadas de trabalho ampliadas neste período, o que aumenta a janela de contaminação. A possibilidade de ampliação da jornada é a segunda medida presente na MP 927, que afeta diretamente os(as) trabalhadores(as) do setor de saúde e que ainda segue com validade.
Pela MP 927, a extensão da jornada desses(as) trabalhadores(as) pode ser feita de duas formas, ambas por meio de acordo individual escrito e para todas as atividades, inclusive as insalubres. A primeira forma é através da extensão da jornada de trabalho, a qual se respaldaria no Artigo 61 da CLT, que trata de extensão da jornada por motivo de “força maior” e para execução de serviços inadiáveis. Segundo o artigo da CLT, essa jornada estendida total não deverá exceder 12 horas. A outra possibilidade de extensão se aplica aos(às) trabalhadores(as) com jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso, os(as) quais podem ter a jornada estendida até a proporção de 24 horas de trabalho para 24 horas de descanso, sendo assegurado, apenas, o descanso semanal obrigatório. A MP estabelece, ainda, que a extensão da jornada poderá compor um banco de horas, a serem compensadas em até 18 meses após o término do estado de Calamidade Pública, ou pagas como horas-extras.
A ampliação do volume de pessoal atualmente empregado no sistema de saúde, privado ou público, será necessária, em virtude das diversas consequências da epidemia, pelo aumento expressivo da demanda por serviços de saúde e em decorrência do afastamento de profissionais de saúde por contaminação ou suspeita ou por óbito. Por outro lado, é possível que muitos(as) trabalhadores(as) também procurem elevar a sua jornada, como forma de aumentar sua renda para compensar perdas anteriores ou uma nova perda de parte da renda familiar, em decorrência da crise econômica. É necessário, no entanto, que se garanta a participação dos sindicatos na negociação desta ampliação, particularmente para categorias de trabalhadores(as) que têm menores condições de negociar individualmente os termos da sua relação de trabalho.
A MP 927, como analisada anteriormente
[5], consiste em uma minirreforma trabalhista, editada para ter vigência no período de Calamidade Pública. Mas terá implicações de longa duração para o mercado de trabalho brasileiro e, principalmente, para as condições de recuperação econômica e social do país, no período pós epidemia de Covid-19. Estão mantidas na MP 927, entre outras, medidas que impactam a remuneração e as indenizações para os casos de dispensa, as quais, somadas a outras medidas editadas posteriormente, como a MP 936
[6], devem obrigar parcelas de trabalhadores(as) a buscar(em) outras fontes de renda em um momento no qual as medidas de distanciamento social são mais necessárias para frear a velocidade de contágio.
Os(as) trabalhadores(as) do SUS com contrato CLT no Estado de São Paulo
No caso da saúde no estado de São Paulo, a MP 927 atinge diretamente os(as) trabalhadores(as) CLT do setor privado e do setor público. Nesse sentido, diversos(as) trabalhadores(as) do Sistema Único de Saúde (SUS) em autarquias - como os Hospitais das Clínicas em diferentes cidades do estado - e em Organizações Sociais da Saúde - com contratos de gestão de equipamentos públicos com o governo do estado de São Paulo e municípios - são impactados. Estima-se que mais de 15 mil trabalhadores(as) são contratados(as) diretamente por apenas dois Hospitais das Clínicas da administração indireta do estado (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto) e mais de 53 mil trabalham em hospitais e Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs), geridos por Organizações Sociais (OSSs) da Saúde contratadas pelo estado.
Ainda não é possível ter uma informação precisa e oficial dos casos de óbitos ou afastamentos por suspeita ou confirmação da contaminação por Covid-19 nesses equipamentos, tanto do setor privado quanto das autarquias e OSSs em contratos de gestão com entes da federação. Mas informações levantadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde do Estado de São Paulo (SindSaúde-SP) e pelo Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (Sindsep) já contabilizavam, no início de maio, 32 mortes de trabalhadores(as) da saúde pública do estado, muitos destes com vínculo CLT, que trabalhavam em OSSs com contratos de gestão com a Prefeitura de São Paulo
[7].
Joana Cabete Biava* – Subseção do DIEESE no Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúde-SP)
[1] Revisão técnica de Carlindo Rodrigues (DIEESE)
[2] O Artigo 31 definia que a atuação dos auditores fiscais do trabalho, por 180 dias, seria apenas orientadora, com exceção de algumas irregularidades mais graves, como a falta de registro de trabalho; a situação de grave e iminente risco para o trabalhador; a ocorrência de acidente de trabalho fatal; e o trabalho escravo ou infantil.
[3] O Artigo 18, que possibilitava a interrupção dos contratos de trabalho pelas empresas por 4 meses, sem pagamento ao(à) trabalhador(a) de qualquer bolsa-qualificação ou mesmo do seguro desemprego, já havia sido revogado no dia 23 de março, pela MP 928.
[4] “Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.”
[5] Para uma análise mais completa da MP 927 ver artigo “
A Medida Provisória nº 927/2020 amplia a Calamidade Pública e penaliza os trabalhadores e as trabalhadoras da saúde” publicado no dia 6 de abril de 2020 em:
http://sindsaudesp.org.br/novo/artigo.php?id=6255.
[6] Para mais informações sobre a MP 936, de 1º de abril de 2020, que, entre outras medidas, autoriza a redução temporária da jornada de trabalho e dos salários por 90 dias, bem como a suspensão dos contratos de trabalho por 60 dias , oferecendo aos trabalhadores um benefício que cobre parte da perda de rendimentos durante esse período, acesse a Nota Técnica nº 232 do DIEESE –
“O Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda diante dos impactos da Covid-19”, disponível em:
https://www.dieese.org.br/notatecnica/2020/notaTec232ProgramaEmergencialGoverno.html.
[7] Para ver as informações levantadas pelo SindSaúde-SP e Sindsep acessar o artigo “
Ao menos 32 trabalhadores da saúde pública morreram de Covid-19” de Celia Regina Costa, Secretária Geral do SindSaúde-SP, disponível em: http://sindsaudesp.org.br/novo/artigo.php?id=6279